domingo, 6 de setembro de 2020

Crítica de Sérgio de Sá sobre A máquina das mãos

Sérgio de Sá
Correio Braziliense
Recebo em casa e leio na contracapa o poema intitulado “Hopper”. É o suficiente para voltar ao forte e imobilizador impacto (como se diante de um quadro de Edward Hopper) sempre provocado pela poesia de Ronaldo Costa Fernandes (foto), que está de livro novo, com título de ressonância drummondiana: A máquina das mãos (7Letras). Autor de outros quatro volumes de poesia e uma série de obras em prosa, Ronaldo escreve porque precisa sobreviver, porque não poderia ser diferente, escreve porque do contrário não haveria existência. A poesia de Ronaldo oferece a cabeça do leitor em bandeja de prata, tira-lhe do prumo, sufoca, faz respirar, angustia, abre o sorriso em meio a um humor despedaçado, triste, melancólico.
Ronaldo faz poemas legíveis sobre uma erudição sem tamanho, submersa na paisagem desoladora da vida urbana. No posfácio, Hildeberto Barbosa Filho diz que Ronaldo toca “o exato limite entre a falta e o excesso, evitando a obscuridade dita inventiva por um lado e, por outro, a facilidade expressiva”. Equilibra-se, portanto, na corda bamba entre a experimentação e a comunicação.
Escreve sobre as cidades de modo geral e sobre Brasília em particular. Em “Lúcio Costa”, pergunta: “São de rodas teus sonhos?/ Há eixos e tesouras na utopia?/ De que material é feito o desejo/ Existe forma no escape, na fuga, na evasão das avenidas?/ Os aviões com sua turbo-hélice obsedante/ A cidade redonda sem círculo que a encerre”. E a mão continua certeira em “Torre”, “Samuel Rawet” e “Rodoviária”. Ronaldo também escreve “Poema para o poeta Fernando Mendes Vianna morto”.
O que mais esperar da poesia senão essa queda no abismo? A máquina formata os versos que já são pensamentos. As mãos tremem para repetir no papel a mente “que quer ser corpo e que dói”. É dolorido ler os poemas projetados por essa tecnologia humana que luta contra as asperezas da vida sem nunca deixar de senti-las.
Se a poesia ainda fizesse sentido, se ainda mexesse nos sentimentos do mundo, Ronaldo Costa Fernandes seria um bambambã, em seu sentido de autoridade. Remexe dentro da língua e da linguagem, traz novos significados para esse marasmo sem chuva, leva o leitor para dentro de um corpo que somente a poesia promete: coração dilacerado pelo que poderia ser mas não é, pelo rito do nascimento-e-morte, pela sede de saber que o tempo está passando e vivemos tão pouco, tão mesquinhamente, tão perto do afeto de sermos sós e tão pouco. O leitor agradece que Ronaldo cometa o “delito da poesia”, uma poesia que dá cãibra, colocando-nos em outro lugar, distante, dormente e, ainda assim, doce.


O BECO DO CORPO
A febre faz mormaço no meu corpo.
As juntas discordam
o bípede que hospedo.
Mínima queda de braço
derruba o dedo levantado da presença.
O que é víscera
se comporta à flor da pele onde nada medra.
Este calafrio responde ao calor
que insiste em tremer
o que se paralisou.
Nenhuma aspirina cura meu quebra-cabeça.

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