segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Otto Maria Carpeaux-3

(terceira e última parte da Introdução à História da literatura ocidental, 4 volumes, editada pelo Conselho Editorial do Senado)

CULTURA ENCICLOPÉDICA OU O ÚLTIMO DOS RENASCENTISTAS
Tinha Otto Maria Carpeaux cultura dita enciclopédica. Expressão não muito apropriada, pois pode remeter a uma cultura ampla, mas pouco verticalizada. A visão que a maioria tinha sobre a obra de Carpeaux era a de um enciclopedista. Entenda-se que é uma maneira de adjetivar e de elogiar o mestre vienense. Mas também pode ser um rótulo redutor, já que a propensão enciclopédica pressupõe larga abrangência de assuntos e um conceito do mundo colocados nos escaninhos dos verbetes, o que discrepa inteiramente de Carpeaux. A tal visão “enciclopédica” estaria mais para o homem renascentista que dominava várias áreas do conhecimento e fazia uso delas, interconectando-as. Carpeaux era um erudito que, dialeticamente, conseguia unir elementos diversos e apresentá-los ao público. Esta sua Historia da literatura ocidental, tanto quanto os seus ensaios, demonstra a capacidade de Carpeaux de fazer ilações, descobrir nexos onde aparentemente não existem e gerar uma síntese provocadora que leva o leitor à reflexão tanto quanto ao conhecimento. A enciclopédia aqui não é a compartimentalização e o dado condensado em pílulas, mas a capacidade de alinhavar conhecimentos, fatos e dados, livros e autores, espírito de época (Zeitgeist), a fim de dar ao leitor uma visão global e social do fenômeno.
Sua metodologia estava imbuída de espírito sociológico, sem esquecer o fundamental elemento estético. É por esta razão que assinala no prefácio do livro: “...em vez de uma coleção de histórias de literaturas, pretendeu-se esboçar a história dos estilos literários, como expressões dos fatores sociais, modificáveis, e das qualidades humanas, permanentes. Os critérios da exposição historiográfica são, portanto, estilísticos e sociológicos”.
O Brasil ganhou muitíssimo com o aporte do imigrante culto e sua contribuição para a cultura universal e, em particular, para a brasileira. Gilberto Freyre, entusiasmado com a História da literatura ocidental, chamou o autor de “um autêntico mestre”. Introdutor no Brasil de estudos mais sistemáticos sobre Kafka, Holfmannsthal, Jacob Burckhardt, Jacobsen e muitíssimos outros, Otto Maria Carpeaux também estudou, entre outros, os nossos José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Cecília Meireles, Aluísio de Azevedo, Gonçalves Dias, e, claro, Machado de Assis e tantos outros mais.
Sua obra é, além do conteúdo, dividida de maneira instigante. No primeiro volume de sua História da Literatura Ocidental, Carpeaux parte da Antiguidade greco-latina, passa pelas expressões literárias da Idade Média e analisa o Renascimento e a Reforma. No segundo volume, o autor desta obra, que Carlos Drummond chamou “livro-chave essencial: a cada página suscita um problema, desvenda um significado, abre um caminho”, faz a exegese do Barroco e do Classicismo no mundo ocidental. Aqui estão analisados a poesia, o teatro, a epopéia e o romance picaresco, entre outros temas e autores, como Cervantes, Góngora, Shakespeare e Molière. Ainda no segundo volume, continua o estudo do neobarroco, o Classicismo racionalista, o pré-romantismo, os enciclopedistas e o que chama de O Último Classicismo (Classicismo Alemão, Alfieri, Chénier, Jane Austen).
O terceiro tomo refere-se à literatura do Romantismo até nossos dias. Um diversificado e denso estudo sobre as causas sociais e estéticas do Romantismo. Os grandes autores do período foram acuradamente estudados (um elenco incomparável e uma hermenêutica rigorosa). Nele também está incluído o nosso Romantismo com substancial contribuição para entendimento de autores brasileiros como José de Alencar, Castro Alves, Álvares de Azevedo e até mesmo o Machado de Assis da sua primeira fase, cunhada de romântica. Ainda neste terceiro volume estão o Realismo e o Naturalismo e seu espírito de época. Balzac, Machado, Eça, Tostoi, Zola, Dostoievski, Melville, Baudelaire, e mais Aluísio Azevedo, Augusto dos Anjos, Graça Aranha e Mário de Andrade, entre tantos autores, aqui são estudados para expressar um período de grande transformação social com o aparecimento do marxismo e das lutas sociais mais politizadas.
O último e quarto volume traz extensa análise sobre a atmosfera intelectual, social e literária do fin du siècle e o surgimento do Simbolismo e aquilo que o autor chama de “A época do equilíbrio europeu”. E, por fim, envereda pelas vanguardas do século XX e faz esboço das tendências contemporâneas. Carpeaux encerra assim sua obra monumental, grandiosa não somente pela extensão e abrangência de autores e estilos de época, mas também pela verticalidade com que analisa e aprofunda cada época, autor e assunto.

ESTRUTURA E MÉTODO: TEORIA DA LITERATURA E CARPEAUX
O instrumental teórico e analítico de Otto Maria Carpeaux estava comprometido com tudo o que de mais avançado havia de teoria crítica da literatura. Se havia apelo ao recurso hermenêutico, ele o fazia não apenas buscando a pouco cômoda ou equivocada intenção do autor, mas colocando-a no fulcro do tempo e do espaço históricos, como no artigo Pulgas e bruxas , que é uma preciosidade para se observar a abrangência de instrumental teórico. Nesse artigo, Carpeaux vai apoiar-se não somente na bagagem hermenêutica (Heidegger, Merlau-Ponty e outros), mas na clivagem da sociologia, na citação de Dámaso Alonso, para ingressar no universo da estilística e, mesmo, apoiando-se no New Criticism.
Também vale citar o que pensava Carpeaux sobre o historicismo e o autor empírico. Diz ele: “O que, da parte do autor, entra na obra, não é a situação real, mas só a emoção, nascida da situação. Nasce uma obra de arte se o autor chega a transformar a emoção em símbolo; se não, ele só consegue uma alegoria. A alegoria é compreensível ao raciocínio do leitor, sem sugerir a emoção, essa emoção simbólica, a que Croce chama o ‘lirismo’ da obra. A forma desse lirismo é o símbolo. O símbolo fala-nos, não ao nosso intelecto, mas a toda a nossa personalidade. O símbolo exprime o que nós outros sentíamos também sem poder exprimir. A expressão simbólica é o privilégio do poeta. Tanto mais durável é a sua obra quanto mais universal é o símbolo. Há símbolos que refletem a situação humana inteira. ”
Certeira e frutificante a observação de Carpeaux na sua introdução à História da literatura ocidental: o fato literário não se desvincula do histórico e o fato histórico não pode ser separado do estético. Tratando de um discípulo de I. Richards, que Carpeaux admira, lembra que o “sentido ideológico só [existe] através da análise dos elementos literários, da análise estilística”. Não se pode, afirma, desvincular a análise ideológica do “fator individual”. Ressalta o perigo de, privilegiando a história das idéias, deixar de lado a expressão estética que é, em último caso, o elemento fundamental da expressão literária. Admirador de Hegel, Dilthey e Weber, Carpeaux tem consciência de que “a experiência vital e a expressão poética” devem andar juntas. E ainda acrescenta: “...como expressão total da natureza humana é que a literatura aparece no mundo e nessa função é que não pode ser substituída por coisa alguma. Mas cumpre distinguir a origem individual das obras, e por outro lado a relação histórica, supra-individual, entre as obras. Aquela é o objeto da crítica literária; esta é o objeto da história da literatura e só se pode basear em critérios estilísticos ou sociológicos.”
O verdadeiro campo da teoria literária, contudo, em que Carpeaux era mais Carpeaux, seu mais eficaz método era a inteligência como instrumental, a erudição como pano-de-fundo, e a especificidade do fenômeno literário.


arthur miller


eugene o'neill

Observemos, por exemplo, a análise que Carpeaux faz dos dramaturgos norte-americanos modernos. O crítico parte das grandes tradições do pensamento norte-americano: o empirismo, o pragmatismo e o puritanismo. A partir desse conjunto de idéias, Carpeaux explica alguns comportamentos dos dramaturgos como O’Neill e Arthur Miller, este com o seu A morte do caixeiro-viajante. O empirismo gerou um fatalismo existente na obra de um Faulkner, com sua “perversão diabólica” do predestinacionismo. “O fatalismo absoluto exclui a tragédia”, sentencia Carpeaux com seu singular final de alguns dos seus parágrafos. O pragmatismo (vide p. 585) “considera o mundo como obra a ser realizada pelo homem. É uma filosofia otimista.” E é ela que vai gerar o teatro leve e comercial: “o mundo é nossa tarefa e a vida recompensa o esforço.” Por fim, a grande tradição ético-religiosa, a herança do puritanismo. É o conflito entre os instintos e a norma. Sobre Arthur Miller afirma, agora aprofundando-se no caráter estético: “Sua visão heróica da vida trivial dos humildes tem algo do ‘teatro épico’ de Brecht; a construção das peças é deliberadamente não-dramática; e usa todos os recursos do expressionismo para tornar ‘irreal’, visionária, a realidade. Suas peças têm força de parábolas morais. Mas essa moral é a do valor maior do sucesso espiritual em comparação com o sucesso material.”
Carpeaux só não introjetara o estruturalismo que chegou a conhecer. E temos duas razões para isso. A primeira é que a escola de Roland Barthes, Lévi-Strauss, Todorov, Kristeva e outros chegava ao Brasil de forma truncada, reduzida por vezes a gráficos e análises mecanicistas, reproduzidas em terra brasileira de maneira estéril e esterilizante. A leitura apressada e mal feita dos franceses criou uma reação equivocada, a mesma que foi usada contra os teóricos do início do século como foi o caso dos formalistas russos: o apriorismo kantiano. Curioso o fato de quase os mesmos estruturalistas estarem na lista daqueles que pela prática quase o negaram, ou seja, aqueles engajados no pós-estruturalismo, muito mais autoral. Se antes desconheciam “a mão que escrevia”, Derrida e Barthes reabilitam agora (entre outros que enveredaram pela psicanálise, como Kristeva) as formas de pensar e buscam autoria genuína e generosa. E é interessante observar como teóricos de esquerda da teoria da literatura como Fredric Jameson inclui e discute pressupostos de um dos mais “estruturalistas” entre os estruturalistas como foi Greimas. E outro teórico neomarxista, também da teoria da literatura, como Terry Eagleton, busque pontos positivos na tentativa dos estruturalistas em buscar na estrutura oculta um pensamento produtivo. Mas, talvez o motivo principal, em relação a Carpeaux, tenha sido seu cansaço da atividade de crítico literário, sua depressão e seu engajamento na luta política que passou, a partir de 1968, a exigir dele suas maiores atenções e esforços críticos.
Numa entrevista à revista de literatura José, em 1976, dada a Luíz Costa Lima e Sabastião Uchoa Leite, Carpeaux advoga uma crítica literária que prima pela precisão. Refere-se ele a sua formação no campo científico como principal causa da ojeriza a uma crítica que ele não chama de “impressionista”, mas que pode se supor poética. Indagado sobre se se comparava menos a um crítico político como Sartre que a um crítico-poeta como Octávio Paz, Carpeaux reage e diz: “acho mesmo que, no caso, poético pode significar imprecisão e meu esforço sempre foi o de evitar a imprecisão”. Quanto à História da literatura ocidental, na mesma entrevista, Carpeaux reafirma, além da declaração explícita de seu método de análise feita no prefácio, que aquilo que o fascina e o move é “a relação entre as obras de uma e outra tendência. Não é um interesse psicológico, mas ideológico. As correntes em conflito.” E ainda aproveita para alfinetar: “É isso que não existe no Brasil no momento.” E mostra um caráter muito específico ao analisar as obras e os autores. Busca a heterodoxia mesmo nos ortodoxos. Uma visão nova ou inovadora, um aspecto ainda não apresentado ou um ponto de vista pouco tradicional. É sobre essa base sólida da originalidade, da não repetição de cânones ou visões estandardizadas que Carpeaux constrói sua catedral analítica de literatura universal. Indagado, por exemplo, sobre sua análise de Baudelaire que não era feita sobre o “lado ocultista” do poeta, Carpeaux observa que preferia escrever sobre a liberdade em Baudelaire, ou seja, um prisma ainda não apresentado sobre o poeta maldito.


A CONTRIBUIÇÃO À CULTURA BRASILEIRA
Sobre a avaliação que seus contemporâneos tiveram sobre Carpeaux, Olavo de Carvalho, na introdução aos Ensaios Reunidos, que ele organizou com sensibilidade crítica e pesquisa exaustiva para a Editora Topbooks, observa que, mesmo Franklin de Oliveira, “ele próprio um gênio da crítica literária e musical, [...] errou de escala”. Franklin fazia o balanço, num artigo de jornal, em 1978, sobre a contribuição do mestre austríaco para a cultura brasileira. O maranhense assinala a incorporação ao “nosso acervo mental” da Geistewissenschaft (a ciência de Dilthey, de Riegl, de Dvorak, de Max Weber, de Croce, de Huizinga). Mesmo reconhecendo a importância do articulista e demonstrando admiração por ele, Olavo de Carvalho registra:

“Essa avaliação resulta em equiparar o velho Carpeaux ao tipo clássico brasileiro do importador cultural, representante comercial que redistribui no mercado local as novas idéias trazidas da Europa. Mas como poderia o autor da História da literatura ocidental ser um distribuidor das Geistewissenschaft se, nos seus países de origem, este estilo de pensar jamais conseguiu produzir nada que se comparasse a essa obra monumental, detendo-se no nível de brilhantes estudos parciais sobre as produções do Espírito no Ocidente, sem jamais elevar-se a uma visão de conjunto? Carpeaux, é verdade, trabalha sobre a base lançada por Dilthey e Weber. Também é verdade que nada lhes acrescenta no que diz respeito à teoria, aos esquemas conceituais, não sendo, de vocação, um teórico, e sim um historiador e crítico. Mas o que ele realiza no campo da historiografia literária vai além das ambições mais ousadas da escola em que aprendeu. A História da literatura ocidental não é só uma contribuição da Geistewissenschaft à cultura brasileira: é uma portentosa contribuição brasileira à Geistewissenschaft.”

Vale a observação que Carpeaux faz sobre Johann Gottfried Herder, alemão da segunda metade do século XVIII que, para o autor de História da literatura ocidental é um dos precursores da historiografia literária. Afirma ele na introdução: “O registro dos livros é substituído pela história das obras e das idéias. Mas Herder não cria apenas indivíduos; também cria, por assim dizer, indivíduos coletivos.” É de fundamental importância essa descrição que Carpeaux faz de Herder, porque ela é uma das descrições que podem se ajustar também ao próprio Carpeaux. Um homem preocupado não somente com o fato literário em si, que por si só já é critério substancial, como em Antônio Cândido, que privilegia o estético antes de tudo, mas sabe que a obra não está solta no horizonte do provável, mas incrustado no terço da História. E Carpeaux, ainda escrevendo sobre Herder: “As Idéias para a Filosofia da História da Humanidade (1784/1791), de Herder, não são uma história literária; mas uma obra cheia de sugestões, duas das quais particularmente importantes: a de que existe uma relação íntima entre a estrutura das línguas e a índole das literaturas; e outra, segunda a qual o mesmo princípio filosófico informa a história política, religiosa, econômica e literária.” Carpeaux não repete Herder, mas o atualiza, já instrumentalizado por outras visões críticas, mas não deixa de ser curioso o comentário, excetuando o fato de as estruturas da língua criarem um determinismo literário, de que as obras vicejam em território da sua contemporaneidade, em tudo o que essa afirmação expande e representa.
Um dado interessante se observa na obra de Carpeaux: o do estilista. Não apenas o crítico seco e didático, mas o pensador que sabe escrever e apresenta de maneira simples, mas bem elaborada, uma idéia, um conceito, uma digressão. Carpeaux é mestre no estilo. Escreve com delicadeza e sensibilidade, tem noção da forma escrita e de que um trabalho de crítica, mesmo histórica, não deve ser maçante. E, mesmo sendo erudito, Carpeaux tinha o instinto do fabricante de palavras e, de forma harmoniosa, encanta-nos com sua dialética paradoxalmente tensa e suave.
Outro dado importante na performance de Carpeaux é seu caráter irônico ao formular questões estéticas de juízo ou teóricas e mesmo no plano das idéias, discutindo filósofos e outros tipos de pensadores. Uma ironia fina, refinada, delicada, que não é sarcasmo, não é o humour inglês dos escritores moralistas, mas uma ironia, certamente européia, e que muitas vezes não era percebida de imediato. Ora, a ironia pressupõe que o interlocutor participe do mesmo repertório do emissor da ironia. Logo, caso o leitor de Carpeaux não tivesse o mesmo conhecimento ou não estivesse aparelhado para perceber a ironia, ela se perdia como pérola dada aos porcos. Uma ironia que podia se apresentar como uma frase curta no final de parágrafo, de artigos e de seus ensaios ou vir embutida num pensamento digressivo e em espiral que resultava numa hipótese irônica. A ironia, diriam alguns, não deveria participar de uma obra de cunho didático. Mas Carpeaux não é didático no sentido mais rasteiro do termo: divulgação ordinária, sistematização precária, diluições desnecessárias, enquadramentos forçados e reducionismos para facilitar o curto alcance de certos leitores. A ironia em Carpeaux fazia parte desse estilo dialético e, ao mesmo tempo, dava leveza ao texto, grandeza ao raciocínio e acentuava o bem-escrever que deveria ser obrigação de todo autor de texto, não necessariamente ficcionista.


CARPEAUX: O TUPINIQUIM VIENENSE
Ao chegar ao Brasil e começar a produzir em português, Carpeaux vai apresentar um comportamento muito singular: é a visão de um europeu sobre a cultura brasileira, não a cultura brasileira vista de fora, mas do interior do fenômeno. Aí é que está o fato curioso, pois Carpeaux não é um brasilianista, mas um intelectual de formação européia que entra em contacto com uma nova realidade cultural e literária e, ao fundir as duas culturas, apresenta a síntese que muitos outros críticos brasileiros não tinham. Essa afirmação não diminui o mérito de inúmeros de nossos críticos, muitos dos quais admirados por Carpeaux e companheiros de viagem do mestre austríaco. O que se quer dizer é que há um deslocamento produtivo que serve a uma visão diferenciada e que pode ofertar ao leitor brasileiro uma história da literatura ampla, de novo ângulo, de perspectiva enriquecedora.
Uma das críticas feitas a Carpeaux seria a de que ele não havia entendido a literatura brasileira, o que não corresponde à realidade. Basta ver os inúmeros artigos sobre a literatura brasileira e o apreço que os jovens escritores da Geração de 30 tinham em relação a ele. Carpeaux escrevia sempre sobre os brasileiros e guardava com carinho as primeiras edições das obras de Raquel de Queirós, José Lins do Rego, Jorge Amado, José Américo de Almeida e muitos outros mais. Inclusive entrando já na geração subseqüente, a de Adonias Filho, Herberto Sales e Josué Montelo. Se Carpeaux, por algum descuido, ou mesmo juízo de valor, tenha cometido uma ou outra injustiça, não se deve ao fato de ser austríaco naturalizado brasileiro. Muitos brasileiros, ditos brasileiríssimos, de norte a sul deste país, também cometeram equívocos avaliativos. Muitos deles ainda militam na crítica literária e fazem de conta que nada aconteceu. O valor, por exemplo, de um João Cabral não foi logo percebido por Carpeaux. Mas também não foi entendido por muitíssimos outros ditos críticos brasileiros.
Quanto à literatura brasileira, vale lembrar que Carpeaux trouxe outro ponto de vista, muitas vezes relegado a plano secundário ou não lembrado pela crítica brasileira. Se fora chamado para colaborar no Suplemento Literário do jornal O Estado de São Paulo, pelo brasileiríssimo Antônio Cândido, crítico rigoroso, marxista aberto às experimentações e à vanguarda, com o mesmo critério de estesia na avaliação inicial da obra de arte, é porque Carpeaux respondia e correspondia à expectativa de um scholar tão engajado como o próprio Cândido.
E mais: Carpeaux não se recusava a participar da luta literária, de escrever sobre autores contemporâneos seus, no calor dos debates e da perspectiva acanhada que a contemporaneidade favorece. Nada mais cruel do que o crítico do momento, pois não tem o distanciamento histórico necessário para avaliar o conjunto de forma isenta. Carpeaux nunca se negou a comentar, analisar, estudar livros de pensadores e de ficcionistas e poetas brasileiros ou internacionais que estavam aparecendo. Era ao mesmo tempo esta espécie rara de encontrar: o crítico literário no fragor da luta e o historiador criterioso e, concomitantemente, universal e particular no estudo do fenômeno literário.
Outro dado a se colocar na coluna dos créditos de Carpeaux corresponde a seu caráter pedagógico. Pedagógico não no sentido restrito de magistério, mas o do amplo espectro do crítico que, ao informar, também está formando o leitor. Carpeaux teve o mérito de, com jeito e estilo saboroso, ir retirando do leitor comum alguns preconceitos e redirecionando a críticas para as expressões mais modernas. Criticava o biografismo pelo biografismo, o abuso da “falácia da intenção do autor” da hermenêutica mais estreita, introduziu elementos do close reading da Nova Crítica e assim foi despojando os interessados em literatura dos adereços que nada acrescentavam ao entendimento da obra do autor. Num artigo precioso sobre Machado de Assis, elogia um dos críticos mais respeitados do bruxo do Cosme Velho, Eugênio Gomes, que soube entender as influências do escritor, mas não exagerou. “Já tive oportunidade para elogiar devidamente os estudos do Sr. Eugênio Gomes; foi ele que nos libertou das afirmações vagas. Nunca escreve sem ter verificado os fatos. Mas começou, desde então, a caça de ‘influências de Machado de Assis’ (eu também já pequei a respeito), das quais até agora se verificaram as seguintes: Balzac, Cervantes, Dickens, Fielding, Flaubert, Garret, Gogol, E.T.A. Hoffmann, Hugo, La Fontaine, Lamb, Leopardi, Xavier de Maistre, Mérimée, Montaigne, Pascal, Schopenhauer, Shakespeare, Smollet, Stendhal, Sterne, Swift, Thackeray. É muito. É demais.” Junto com Afrânio Coutinho, que se tomou a tarefa de renovar a crítica brasileira, não somente através de artigos sistemáticos na imprensa sobre a Nova Crítica, mas também em seu magistério, e até mesmo na direção da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Carpeaux fez do jornalismo um espaço também da correção de rumos da crítica brasileira.
Quanto ao aspecto pedagógico, vale dizer que grandes nomes da cultura brasileira freqüentavam as páginas de Carpeaux e, junto com outros autores, e alguns mesmo seguindo uma carreira acadêmica como Alfredo Bosi, puderam fazer da leitura dos artigos de Carpeaux um vademecum da literatura. São vários os testemunhos daqueles que acompanharam pelos jornais o pensamento político e literário do austríaco. Sem nunca ter ocupado uma cátedra no Brasil, Carpeaux talvez tenha sido um dos professores mais influentes na cultura e na academia brasileiras. Embora não se desse esse crédito e acreditasse que fazia apenas jornalismo, Carpeaux na verdade estava ajudando o pensamento crítico brasileiro a ser construído. Sua declaração de que a intelligentsia brasileira nada devia à européia (revista José) não era apenas uma forma de mostrar simpatia pelo país que o acolheu, mas também uma forma reconhecer que se sentia à vontade entre seus pares políticos e críticos literários.
Mais um fato que conta a favor de Carpeaux é a sua permanência no Brasil, após o final da Segunda Guerra Mundial. Carpeaux poderia muito bem retomar o elo rompido com a Europa e ter feito carreira muito mais internacional e de êxito do que a que fez no Brasil. Um país periférico, que dava os primeiros passos rumo à independência cultural – embora alguns julguem não haver chegado até agora –, e que ainda, no meio cultural, estava povoado de intrigas e resistências aos câmbios mais radicais. Incapaz de produzir uma filosofia de cunho próprio – e não somente discutir os filósofos, pensadores e teóricos europeus –, assim como não criou nenhuma escola autônoma de crítica literária, o Brasil mais prejudicava a inteligência que ajudava a vicejar o pensamento amplo de Carpeaux.
O Brasil lucrou mais com a permanência de Carpeaux aqui do que Carpeaux propriamente usufruiu o ambiente pouco propício à discussão de idéias originais e próprias. Mas a História não se constrói no verbo no tempo condicional. Ainda que há de se reconhecer que muitos aqui passaram, principalmente por São Paulo, e regressaram à Europa e produziram sua obra. Caso, entre muitíssimos outros, de um Lévi-Strauss. Carpeaux teve que suportar o exercício do jornalismo e as direções de bibliotecas e, mais tarde, a redação de verbetes de enciclopédia para sobreviver. Não lhe veio cátedra nem parece que ele a pleiteou. O meio cultural brasileiro talvez possa ter amesquinhado uma trajetória que, na Europa, poderia ter sido exuberante. O certo é que nosso Carpeaux, com toda a sua bagagem européia, sempre atualizada, mas não convivendo com as maiores inteligências do seu tempo na Europa, fez a opção pela terra brasileira.
Por fim, registre-se que esta é uma obra indispensável não apenas para os interessados em literatura, mas também para aqueles que querem entender a sociedade através do tempo e da sua expressão literária. Uma coleção que é mais do que uma coletânea de autores em seu tempo: este livro é um magnífico painel do esforço humano para eleger o humanismo como experiência de vida e exemplo de dignidade do homem.


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