quarta-feira, 9 de setembro de 2015

Ritos de passagem, William Golding


Ritos de passagem é uma escrita à antiga, à maneira do séc. 18 ou 19. O grande perigo: o romance de Golding é um romance à antiga tout court. Não só escreve à maneira de como também tem cheiro de mofo de nau antiga. O drama do reverendo não tem tanto impacto do ponto de vista de hoje. O romance histórico contemporâneo opera com dois tempos: tempo da história x tempo da escritura. Se não houver maneira nova de fazer o velho, o romance histórico passa a ser bobagem escrita como imitação barata de antigüidade vendida em loja de departamento.

William Golding ( 1911-1993 ), prêmio Nobel, mais conhecido pelo seu O senhor das moscas, serviu na Segunda Guerra. É daí que vem o conhecimento náutico do autor. Conhecimento que cansa o leitor com tantas referências técnicas. Roland Barthes fala de um barômetro em Madame Bovary que não teria significado no texto além de produzir ilusão referencial. Aqui os “barômetros” abundam.

O autor nos induz a ler o livro dentro do marco da teatralidade. Frequentemente cita marcações de teatro, recorda lições de drama e, por fim, ao final, existe uma representação teatral feita pelos passageiros. O navio, é claro, é alegoria da sociedade, reduzida em espaço minúsculo. Mas, antes do teatro, o que existe ali é a velha luta do homem x barbárie. Se em O velho e o mar, o personagem luta contra um peixe, assim como em outras narrativas náuticas o mar é o grande adversário, aqui, na duração de uma viagem, o grande vilão é o próprio barco, que encarcera os homens e animaliza-os.

Ritos de passagem, publicado em 1981, ganhador do maior prêmio inglês (Booker Prize), primeiro de uma trilogia, é narrado principalmente pelo nobre Talbot e, subsidiariamente, pelo reverendo Collie, através de seus diários. Híbrido de romance epistolar, romance de formação, Ritos de passagem não consegue criar o Horror com que é anunciado. Golding não chega nem aos pés da tensão, horror e grandiosidade criados, por exemplo, numa outra viagem náutica ao mundo colonial inglês como No coração das trevas, de Conrad.

O romance inicia-se lento e um pouco disperso. O leitor não chega a perceber aonde o autor que levá-lo. Caracteriza o narrador como nobre e impiedoso, mas as maldades de Talbot são contradições comuns aos homens. Há um caso fortuito e de romance de capa e espada com uma mocinha de nome Zenóbia que, praticamente desaparece o resto do romance. Só a partir da metade do livro é que o ritmo de suspense, mistério, desconfiança, tramas sutis é estabelecido. E aí o leitor, não há como negar, deverá ser tomado por uma volúpia de leitura.

A ironia de Golding é pesada. Ora, a Inglaterra gerou alguns dos maiores humoristas e satíricos da história da literatura. A ironia de Golding existe, mas é tão rígida e não corresponde ao formidável humour de Fielding, Sterne, Swift ou mesmo a ironia culta de Oscar Wilde. A ironia poderia aliviar o tom passadista do romance de Golding. De qualquer maneira, penso que para o leitor comum, que busca apenas passatempo, a leitura de Ritos de passagem pode ser entretenimento refinado. Ultrapassados os objetos de náutica espalhados no convés da narração, a leitura flui, prende e cria a surpresa final.

Curioso é observar como o diário de Talbot passa a ser um instrumento de chantagem, de insinuações de ameaça e constrangimento. O capitão teme como será representado nele. O diário vira escrita dentro da escrita. Desta forma, o diário não é metáfora da literatura, mas da força da palavra que pode escrever a “realidade”. A palavra não tem o dom de nomear o mundo e, por força de origem, criá-lo. É mais um instrumento de perversão. Um depoimento que pode mudar o rumo da realidade, bastando apenas que se mudem as palavras.

A viagem marítima já foi vista como a mais cobiçada forma de experiência ( Benjamin ). Golding pertence a um país marítimo ( Inglaterra ), com seu poderio naval, que já nos abasteceu com uma bibliografia imensa sobre o mar. O título do livro é significativo: formação e penetrar mundo novo. O rito de passagem antropológico e atravessar o equador, passando do mundo da cultura para o mundo da barbárie, o trópico, as Antípodas que é a Austrália. No fundo, é a visão eurocêntrica: abaixo do equador está o Mal.




imagem retirada da internet: william golding

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