quinta-feira, 17 de março de 2011

Joaquim Nabuco e o engenho de sua infância

Reforma feita por fundação demorou dois anos, custou R$ 500 mil e seguiu descrições de livro do abolicionista

Infância passada na fazenda descortinou para ele a realidade do regime escravocrata que ele viria a combater



MARCELO BORTOLOTI

ENVIADO A CABO DE SANTO AGOSTINHO (PE)



"A escravidão para mim cabe toda em um quadro inesquecido da infância, em uma primeira impressão, que decidiu, estou certo, do emprego ulterior de minha vida."

As palavras do abolicionista Joaquim Nabuco (1849-1910) estão no livro "Minha Formação", de 1900.

Nelas, ele se refere a um episódio que viveu no engenho Massangana, no interior de Pernambuco, onde morou até os oito anos, e cujas casa grande e capela foram recentemente restaurados.

Nabuco estava sentado na entrada do casarão quando um negro desconhecido caiu de joelhos implorando que fosse comprado. Dizia que seu dono o maltratava e que corria risco de vida.

A cena descortinou para Nabuco o regime escravocrata com o qual convivia no engenho sem conhecer sua face mais dolorosa.

Nabuco teve as primeiras impressões do mundo nesta propriedade, onde foi criado pela madrinha, já que seus pais se mudaram para o Rio.

Ali, cresceu entre negros num ambiente em que senhores e escravos conviviam em relação amistosa.

Mais tarde, dedicou a vida a combater esse regime como político, jurista e escritor.

O restauro das edificações, empreendido pela Fundação Joaquim Nabuco, demorou dois anos e custou R$ 500 mil. A obra obedeceu às descrições que o próprio abolicionista fez no livro de 1900.

"Localizamos onde havia janelas na casa e onde foi enterrada a madrinha dele", diz o arquiteto Antônio Montenegro, que coordenou o trabalho de restauro.

Foram colocados móveis da época e uma exposição permanente descreve como era a fazenda e sua rotina. Em fotos e vídeos é possível conhecer um pouco mais da vida e da formação moral de Nabuco.

Mas muita coisa sucumbiu com o tempo. Não existe mais o antigo engenho que moía a cana, a senzala, nem o cemitério onde eram enterrados os escravos. (Folha de São Paulo, 11.3.2011)

terça-feira, 15 de março de 2011

REFUGO HUMANO NOS CONTOS DE RONALDO COSTA FERNANDES




José Ribamar Neres Costa



O sociólogo polonês Zigmunt Bauman é conhecido por defender a ideia da liquidez dos relacionamentos no mundo contemporâneo. Contudo, apesar de ser essa a teoria mais difundida desse pensador, outros conceitos podem ser identificados em sua vasta obra, entre eles o de refugo humano. Para Bauman (2005), o mundo está passando por transformações muito rápidas e com isso produz uma série de elementos indesejáveis para uma sociedade que preza por modismos e constantes renovações. Como não há espaço para todos na linha de produção e de consumo, há a necessidade de tentar reutilizar os produtos humanos que ainda possam ser aproveitados para a produção de novos bens de consumo – pessoas redundantes – e de excluir o excedente improdutivo, o chamado refugo humano, sendo que o destino de ambas as categorias “é o depósito de dejetos, o monte de lixo” (BAUMAN, 2005, p. 20).
Na literatura brasileira, diversos escritores criaram personagens que vivem abaixo da linha da pobreza material e que poderiam ser encaixadas na categoria de pessoas refugadas apresentada por Bauman (2005). Alguns livros são bastante conhecidos não apenas pela arquitetura literária, mas também por destacarem personagens que representam uma parcela menos privilegiada da sociedade. É o caso de Vidas Secas (de Graciliano Ramos), O Quinze (de Rachel de Queirós), Capitães de Areia (de Jorge Amado), Dois Perdidos numa Noite Suja (de Plínio Marcos), O Grande Mentecapto (de Fernando Sabino), A Hora da Estrela (de Clarice Lispector), O Alucinado Som de Tuba (de Frei Betto), Quarto de Despejo (de Carolina de Jesus) e Malagueta, Perus e Bacanaço (de João Antonio), entre tantas outras obras que retratam a vida de pessoas comuns, cercadas de limitações econômicas e que vivem em um ambiente marginalizado e em constante situação de risco social.
Apesar de não apresentar nenhuma personagem que já tenha sido elevada à categoria de ícone literário nacional, Manual de Tortura, livro de contos publicado em 2007, pelo escritor maranhense Ronaldo Costa Fernandes, também pode ser colocado ao lado dos demais acima citados não somente por suas qualidades literárias como também por acrescentar outras peças à galeria de personagens refugadas das letras brasileiras
As personagens de Manual de Tortura encaixam-se, em sua maioria, nas categorias propostas por Bauman de pessoas redundantes e de seres refugados pela sociedade. Na maioria dos dezenove contos que compõem a obra, há um desfile de personagens perplexas ou em estado de indiferença com relação às condições desumanas que lhes são oferecidas como forma de sobrevivência ou de apenas prolongamento do tempo de passagem pela vida.
Neste artigo, serão estudadas algumas personagens de alguns contos do livro Manual de Tortura pela perspectiva sociológica da necessidade e das situações de risco que podem levá-las à situação de refugo humano dentro da sociedade capitalista. Além de Bauman, em cuja teoria estará centrado este trabalho, outros autores tanto dos estudos sociológicos quanto dos literários serão utilizados como referência teórica e ilustração das ideias destacadas, é o caso de Caliman (2008), Candido (1995, 2005), Maria (1984), Gotlib (1999) e Fernandes (2008).

Pessoas Redundantes e Refugo Humano
Segundo Bauman (2004), como todo modelo de ordem é seletivo, torna-se parte do processo da modernidade o apoio a um processo de exclusão que leve para longe dos setores produtivos os indivíduos que não sirvam como elemento produtor de bens e/ou serviços para nenhum dos nichos da sociedade. Isso significa que o contínuo processo de criação de bens de consumo acaba criando outro produto indesejado: o lixo humano.
Partindo do princípio de que “sem seleção não haveria história” e de que “para algo ser criado, deve-se destinar alguma coisa ao lixo” (BAUMAN, 2005, p. 26/32), chega-se à constatação de que tão importante quanto encontrar espaço para novos consumidores e novos produtores de bens de consumo é também encontrar um lugar seguro para depositar os elementos refugados e sem serventia imediata. Dessa forma:
Saber é escolher. Na fábrica do conhecimento, o produto é separado do refugo, e é a visão dos potenciais clientes, de suas necessidades e desejos, que decide o que é o quê. Sem lugares para depositar o lixo, a fábrica do conhecimento está incompleta. (BAUMAN, 2005, P. 28)
Esses elementos que não mais estão servindo ao meio de produção são classificados pelo sociólogo polonês como pessoas redundantes ou refugo humano.
No primeiro caso, aparecem os seres redundantes, tidos principalmente como um problema financeiro, pois, por não terem meios de sobrevivência, precisam ser alimentados, vestidos e abrigados. Como os membros desta categoria ainda podem apresentar algum fator de lucratividade, pois ainda podem vender sua hipotética força de trabalho, eles, apesar de serem vistos como extranumerários, sem uso, improdutivos e até mesmo desnecessários, são mantidos vivos, como reserva para um caso de emergência. Bauman (2005) deixa claro que, como o problema da redundância é financeiro, as soluções imediatistas encontradas também assumem caráter pecuniário, em forma de “esmolas fornecidas pelo Estado ou por ele promovidas e testadas em relação aos meios” (BAUMAN, 2005, p. 21).
Bem próximo aos seres redundantes está o refugo humano, que “pode ser descrito como simultaneamente o problema mais angustiante e o segredo mais bem guardado de nossos dias” (BAUMAN, 2005, p. 37). Em outras palavras, na categoria de refugo humano estão inseridas as pessoas excluídas pela sociedade, pessoas estas que “não contam realmente na elaboração das políticas sociais; são abandonadas à própria sorte ou, no máximo, contempladas no âmbito da assistência social, a qual se caracteriza em grande parte pelo assistencialismo”. (CALIMAN, 2008, p. 46).
Como “onde há projeto há refugo” (BAUMAN, 2005, p. 41), esses dejetos humanos precisam ser despejados em algum lugar, de preferência bem longe dos centros consumidores, para que não atrapalhem as relações comerciais e nem incomodem os detentores do poder econômico em suas atividades. Então para onde levar os seres redundantes? Onde pôr o refugo humano que se multiplica dia após dia?
Como resposta para essas indagações, o sociólogo polonês diz que:

"Todo refugo, incluindo as pessoas refugadas, tende a ser empilhado de maneira indiscriminada nos mesmos depósitos. O ato de destinar ao lixo põe fim às diferenças, individualidades, idiossincrasias. O refugo não precisa de distinções requintadas e matizes sutis, a menos que seja marcado para reciclagem." (BAUMAN, 2005, P.98)

Nessa concepção, o elemento que está marcado para reciclagem pode ascender da condição de refugo humano para a de ser redundante, como ocorre no conto "A Oficina", de Fernandes (2007) no qual os protagonistas são homens encarregados do armazenamento de caixas com conteúdos desconhecidos. Eles desconhecem o conteúdo das caixas, mas sabem que precisam trabalhar e que de nada adiantariam as possíveis reclamações, pois há necessidades básicas que precisam ser satisfeitas, sem questionamento sobre as razões do trabalho que está sendo feito. O narrador do conto, que também vive nessa situação, não sabe nada além do que lhe foi permitido saber e comenta:

"Apenas sabemos de um caso: quando abriu a caixa, caiu morto. Não sabemos se a caixa contém bactérias mortíferas, cancerígenas ou infecciosas. Tudo o que sabemos é que não devemos abri-la e que a curiosidade, pecado venial, experimentação mental, exercício espúrio de viver, não corresponde à nossa maneira viril de uma existência pura. [...] A meta de um homem não deve ser a quantidade de caixas que carregou, mas a capacidade de entender o que elas representam" (FERNANDES, 2007, p. 88).

É para ambientes como estes que os seres redundantes são levados. Quanto ao refugado, resta-lhe a certeza de “o destino do refugo é o depósito de dejetos, o monte de lixo” (BAUMAN, 2005, p. 20).
É nesse ambiente de refugo e de reciclagem humana que Ronaldo Costa Fernandes ambienta alguns dos contos de seu livro Manual de Tortura.


Ronaldo Costa Fernandes
Mesmo sendo um dos intelectuais contemporâneos mais premiados e de fazer parte de diversas instituições culturais de renome, Ronaldo Costa Fernandes não é um escritor muito divulgado fora dos círculos de discussão da literatura de alto nível. O que torna essencial uma breve apresentação do autor antes do início da análise dos contos que compõem seu livro.
Nascido em São Luís do Maranhão em 29 de agosto de 1952, Ronaldo Costa Fernandes desde cedo demonstrou ser um apaixonado pelo universo das palavras. Graduou-se em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde também fez seu mestrado em Literatura Hispano-Americana, defendendo o trabalho A Oralidade em Três Tigres Tristes. Depois, na Universidade de Brasília, defendeu sua tese de doutorado intitulada Cabo de Guerra da Imaginação.
Como professor, Ronaldo Costa Fernandes ministrou aulas em diversas instituições de curso superior no Brasil e em outros países. Também, durante nove anos, dirigiu o Centro de Estudos Brasileiros em Caracas, na Venezuela. Intelectual respeitado, o escritor faz parte de várias instituições culturais, com destaque para a Academia Brasiliense de Letras – onde ocupa a cadeira número 18, e a Academia Maranhense de Letras – onde ocupa a cadeira número 31, que anteriormente pertencia ao romancista Josué Montello.
Autor de diversas obras nos mais variados gêneros, o escritor maranhense, embora tenha publicado seu primeiro livro – Urbe – em 1975, renegou o trabalho de estreia por considerá-lo ainda imaturo. Em 1979, publicou João Rama, romance:
De texto ágil, leve e fascinante que se lê prazerosamente de um fôlego só, graças à dinâmica da narrativa que maneja magistralmente a fragmentação do tempo/espaço e a fusão do cotidiano, acrescida da nossa identificação com o herói – a um só tempo, ingênuo, bruto, romântico, medroso, valente e angustiado –, deixando a cada capítulo terminado a urgência de se ler o seguinte, até a chegada do desfecho (desfecho?), que se abre para outras histórias, instigando o leitor a querer mais, a saber mais. (FERNANDES, 2008, p. 72)
Além de João Rama, o autor publicou também os seguintes romances: Retratos Falados (1984), Concerto para Flauta e Martelo (1997), O Morto Solidário (1998) e O Viúvo (2005); a novela O Ladrão de Cartas (1981); o ensaio sobre literatura O Narrador do Romance (1981); e os livros de poesia Estrangeiro (1997), Terratreme (1998), Andarilho (2000), Eterno Passageiro (2004) e A Máquina das Mãos (2009), livro com o qual recebeu o prêmio de Poesia da Academia Brasileira de Letras. Além do livro de contos Manual de Tortura (2007), que é o objeto de estudo deste artigo.

Manual de Tortura
Composto por 19 contos e menos de 100 páginas, o livro Manual de Tortura marca a estreia de Ronaldo Costa Fernandes na narrativa curta. As temáticas giram em torno da figura do ser humano, com personagens carregadas de angústias, neuroses, sentimento de culpa, desejo de vingança, uma espécie de vazio existencial e falta de perspectiva de melhores condições de vida.
As personagens dos contos não veem utilidade na própria ação laboral executada cotidianamente. São seres geralmente autômatos sem vontade própria, com a consciência de que são redundantes em uma sociedade que faz questão de deixar claro que, como comenta Bauman (2005), não necessita dessas pessoas, podendo passar muito bem ou até melhor sem elas, mas que, paradoxalmente, se torna também dependente delas para a execução de tarefas que ninguém quer executar.
Significativa é a fala/pensamento da personagem central do conto "A Nuca", que sempre tem que entregar os relatórios, em uma tarefa repetitiva, que faz com que ele perca a noção do tempo.

"Querem o relatório. E o relatório eu o entrego regularmente como defeco ou tenho sede. O relatório passou a ser orgânico, biológico, visceral, enfim, circular. Às vezes penso em mim sem pernas. De tanto ficar sentado, elas se anestesiam. A dormência toma conta de todo corpo e logo não o tenho mais. Oh Deus, não tenho mais fibras, membros, dedos, nariz, extremidades, sou apenas abstração." (FERNANDES, 2007, p. 62)

Em seus contos, Ronaldo Costa Fernandes parece seguir a indicação de Maria (1984), para quem o contista deve produzir com a linguagem o efeito de um flash e conduzir a narrativa buscando a profundidade, alcançando uma dimensão de verticalidade, e leva para a prática também a concepção de Gotlib (1999), para quem o conto, além de ser breve, deve captar o momento, o flagrante do presente, sem preocupação com o antes nem com o depois. O autor do Manual de Tortura não se preocupa com a extensão horizontal do texto, ou seja, com o tamanho do conto, mas sim com o instantâneo que pode ser produzido pelo captar de um momento único na vida ficcional das personagens.
Em cada conto do livro, o leitor encontra não apenas uma história a ser contada, mas também um ponto de reflexão sobre a existência humana, pois cada texto pode ser visto também como uma metáfora de uma realidade que poderia ser lida nas páginas de um jornal, mas que ganham uma dimensão maior quando são compostas em forma de arte. Em cada conto há a possibilidade de múltiplas leituras, que podem ir da mais ingênua paráfrase do enredo ao mergulho profundo na psicologia das personagens ou nos aspectos sociais intrínsecos nas metáforas utilizadas pelo autor.

O Refugo Humano nos Contos de Ronaldo Costa Fernandes
Candido (1995), ao tecer comentários sobre a relação entre a Crítica e a Sociologia, afirma que para ressaltar uma verdade nada é mais efetivo nem mais perigoso do que exagerar essa realidade que se quer destacar. À primeira vista, os contos de Manual de Tortura podem parecer exagerados, até mesmo caricaturais em algumas passagens, mas com um olhar mais atento, é possível perceber que, por trás de um aparente exagero na composição das situações e das personagens, há reflexos sociais que são expostos alegoricamente para o leitor.
Na certeza de que há “afinidades e diferenças essenciais entre o ser vivo e os entes de ficção” (CANDIDO, 2005, p.55), Ronaldo Costa Fernandes cria situações inusitadas em ambientes verossimilhantes. Logo no parágrafo inicial do primeiro conto do livro, um professor de grego ideologicamente deslocado, mas fisicamente inserido em um ambiente e em uma época em que esse idioma não é mais ensinado nem valorizado comenta:

"Vamos, imagine um padre de batina na fila de uma boate de striptease. Uma geladeira no meio da sala. Um fogão no banheiro. Vamos, imagine. A imaginação tem dois defeitos. A imaginação tem vários defeitos. Mas dois me confundem, só dois. A imaginação, ora. Incendeia quando deve esfriar e não se conforma com um círculo na casa dos quadrados." (FERNANDES, 2007, p. 07)

Esse deslocamento, metaforizado no texto pela imagem do “círculo na casa dos quadrados” é uma constante contos de Manual de Tortura, cujas personagens podem, em diversos casos, ser vistas como exemplo de seres redundantes e/ou de refugo humano, conforme a concepção sociológica de Bauman (2004 e 2005). O professor precisa sobreviver e tem que vender seus conhecimentos a quem não sabe valorizar aquele produto intelectual abstrato, o que o leva a questionar a própria existência e sua condição de intelectual entre seguidores das banalidades mundanas.
Anteriormente, neste artigo, foi feito um esboço de diferenciação das categorias de seres redundantes e refugo humano, no entanto o próprio sociólogo polonês adverte para o fato de que:

"Mesmo que a ameaça à sobrevivência biológica fosse identificada e enfrentada de modo efetivo, esse fato não chegaria nem perto de assegurar a sobrevivência social. Não será suficiente para a readmissão dos “redundantes” à sociedade de que foram excluídos – da mesma forma que armazenar o lixo industrial em contêineres refrigerados dificilmente seria suficiente para transformá-lo em mercadoria. "(BAUMAN, 2005, p. 21)

Ou seja, na prática, não há muita diferença entre seres redundantes e refugados, já que todos compartilham das mesmas condições de pobreza e de mal-estar social de que fala Caliman (2008). Por isso, neste trabalho, serão consideradas como refugos humanos todas as personagens do livro que são despidas de sua condição de auto-estima e de dignidade humana ou ainda aquelas que são exploradas pelos detentores do poder.
Algumas personagens de Manual de Tortura são seres excluídos do cerne da sociedade, mas que ainda servem para lubrificar a complexa engrenagem da sociedade com a força de seu trabalho. É o que acontece com o protagonista de "O Incêndio". Um homem que convive com as lembranças de uma família que já não existe e com a certeza de um emprego que não lhe favorece a expectativa de alguma conquista, vivendo, então, “numa situação em que é impossível ganhar” (BAUMAN, 2005, p. 55).
Grande parte das personagens dos contos do livro, na falta de alguém para dialogar, tece um monólogo no qual as lamentações apresentam relações de similaridades. O protagonista de "O Incêndio" comenta:

"Agora estou nessa firma de limpeza. Me mandaram para cá. Não reclamo, pobre não pode reclamar, se tivessem mandado pro inferno, ia deixar o inferno limpinho. Aqui não é o inferno, mas bem que tem ligação com ele. Meu trabalho aqui é limpar o necrotério. [...] Varrer do chão o resto dos cadáveres. É ver os bichos lá estendidos. Recolher os sacos de lixo com bando de fígados, vesícula, pedaços de coração, linha pra costurar defunto, o diabo a quatro num lixo que vai ser queimado." ((FERNANDES, 2007, p. 67)

O fragmento acima dialoga com o trecho do conto "A Morte de Tio Lúcio", no qual o obcecado protagonista enxerga seu tio em todos os lugares e não entende como aquele homem que sempre é assassinado volta a perturbar sua vida. É assim que a personagem se apresenta ao leitor:

"Fiquei desempregado mais de um ano. Casado, com contas para pagar, minha mulher trabalhando feito uma maluca, eu visitando as empresas, recebendo não na cara, a primeira coisa que pegava no jornal eram os classificados. Nem lia o resto do jornal. Já minha mulher trabalhava oito horas em pé no balcão do Othon Palace Hotel, na Avenida Atlântica. Aquilo acabava com meus nervos. Meus nervos estavam em pandarecos." (FERNANDES, 2007, p. 41)

Com a criação de diversas personagens que vivem em situação de descontentamento com relação à própria vida, em alguns casos rebaixadas à condição de objetos de dentro ou de fora da empresa em que trabalham, o autor tece críticas sutis à forma desumana como são tratadas as pessoas que têm apenas a força de trabalho como matéria de venda ou aluguel, tornando-se, inclusive, em alguns casos, parte do espólio da empresa à qual serve. É esse o caso dos contos "A Mesinha" e "A Fábrica", onde o autor metaforiza o tempo de serviço dedicado a uma empresa e o processo de coisificação a que os empregados, não importando o cargo, são submetidos.
Em "A Mesinha", o narrador, um funcionário há muito tempo trabalhando na mesma empresa, percebe que sua mesa está diminuindo a cada dia. Em uma narrativa que lembra os textos de Franz Kafka, a mesa, aos poucos vai ficando cada vez menor até desaparecer, deixando o protagonista a trabalhar em pé. A solução encontrada pelo funcionário é reclamar para quem ocupa um posto mais auto na hierarquia da empresa e exigir sua mesa de volta. O desfecho revela que a condição de insegurança não é uma exclusividade de quem está na base da cadeia de produção, mas sim que a situação se alastra pelas diversas esferas.

"Invado a sala do Dantas, mas sou tomado por uma surpresa absoluta que espanca meu espanto como uma porta fechada de madeira de lei: o Dantas está em pé, abre os braços, olha atônito em volta. Veja só, lamenta-se, agora tenho que trabalhar em pé, a mesa sumiu, ele me sussurra como se alguém pudesse nos ouvir, a mesa sumiu, repete, abandonado, os olhos de madeira estupefata como olhos de boneco." (FERNANDES, 2007, p. 54)


No conto "A Fábrica", um funcionário, que abandonou a esposa para casar-se com a filha do gerente de produção da empresa, vê-se reduzido à incômoda condição de fila, “onde não existe saída, plano ou sonho” (FERNANDES, 2007, p. 76). A constatação de que todos os seus parentes estão mortos, mas permanecem na fila assusta o protagonista, que agora se iguala aos demais componentes da grande fila, sendo também obrigado a esperar e sabendo que, de acordo com a teoria de Bauman (2005), esperar é um ato vergonhoso, já que reflete o baixo status e passa um claro sinal de exclusão.
Pessoas que vivem em situação de instabilidade emocional ou mental podem também ser encaixadas na condição de refugo humano. É o que acontece com a personagem principal de "O Embrulho", um homem que fica em uma esquina com um embrulho nas mãos. Ele não sabe o que há no pacote. E nem lhe interessa saber. Mas sabe que outros homens trazem nas mãos algo parecido, aparentemente com a mesma missão e isso ameniza suas preocupações e o faz mais parecidos com os outros indivíduos que se encontram na mesma situação.
As alucinações e obsessões são duas constantes nos contos do livro. Em " Uma Câmera na Cabeça", um cineasta acredita que está se transformando em uma câmera e passa a viver como se fosse uma filmadora registrando tudo o que acontece a seu redor. Em "Sexo e Cia", um casal vive momentos ardentes na cama. Enquanto se entregam ardentemente um ao outro, cada um imagina uma fantasia maior. Ele, açougueiro e obcecado por carne, almeja retalhá-la após a relação. Ela, que vive pensando em frutas, deseja devorá-lo como uma fruta madura. Nesse conflito de interesses, o verdadeiro prazer não está na satisfação sexual, mas sim na possibilidade de realizar algo que seria inconfessável.
Essas personagens refugadas, imersas em suas neuroses aparecem em outros textos do livro. No conto "Os mortos falam ao telefone", após um acidente, um homem financeiramente bem sucedido passa a ouvir vozes estranhas e passa a colecioná-las em gravações. Grava a própria voz e liga para si mesmo, ou, às vezes, para ninguém para ouvir o silêncio.
Saindo do campo das obsessões, tem-se também a história de Calunga, um lutador de boxe pobre e fracassado, apaixonado por música erudita. Ele, de repente, se vê patrocinado por uma rica e misteriosa mulher. A personagem, como quase todas do livro, é um ser derrotado pela própria história de vida. Ele mesmo se vê como um saco de vísceras e reconhece que “é uma desgraça você se considerar um saco de vísceras” (FERNANDES, 2007, p. 20). O texto inteiro oferece margens para reflexões acerca do fracasso humano e de como alguém pode ser nocauteado por um passado desconhecido até por si mesmo.
O fato de dar preferência à narrativa em primeira pessoa permite ao escritor Ronaldo Costa Fernandes criar personagens diversas, com vivências variadas e que em alguns momentos demonstram certo grau de desajuste com relação aos aspectos sociais, seja pelo mergulho em uma realidade particular, seja pelo fazer parte de um grupo de excluídos sociais. Em suas narrativas, o autor não apenas conta pequenas histórias, mas também constrói metáforas sobre a situação social do povo em geral. Suas personagens quase sempre não têm nome próprio, sendo tratadas de forma geral ou por referência a suas atividades, o que serve para ampliar a abrangência das críticas subliminares à condição social vivida pelos seres fictícios, mas que podem ser reflexo do que acontece no mundo real.
Os ambientes escolhidos pelo autor, geralmente fechados e sufocantes, servem como forma de suscitar a opressão e a angústia de ter de viver encerrado entre quatro paredes com a consciência de um mundo de liberdade que vai além das possibilidades materiais das personagens. De modo geral, as personagens de Manual de Tortura se veem divididas entre dois universos bastante palpáveis, mas que, na condição de refugados sociais, só podem pertencer a um deles, o representado pelas favelas, pelo escritório ou da fábrica cercada de serviços por todos os lados.
Em uma breve passagem do conto "O Incêndio", o leitor pode ter uma ideia geral de como se sente quem recebeu ou recebe a etiqueta de refugo social e tem de conviver entre dois mundos antagônicos:

"Eu não acho fácil ler a Bíblia, porque tem um monte de palavras difíceis. Acho até mesmo que muito evangélico lá da invasão fala as palavras, mas não sabe o que significam. Pobre mora em outro país, com outras leis, outra língua. O diabo é a gente trabalhar o dia inteiro no país dos outros e de noite ir dormir no país da gente." (FERNANDES, 2007, p. 68)

Considerações Finais
 O refugo humano é uma teoria sociológica defendida por Zygmunt Bauman em alguns de seus livros sobre a condição pós-moderna e a liquidez das relações. No entanto os estudos literários dão margens para a utilização de teorias oriundas de outras ciências como fonte referencial para a análise e/ou interpretação de textos literários.
A partir dessa constatação, foi analisado o livro Manual de Tortura, do escritor maranhense Ronaldo Costa Fernandes, com base nas situações vividas pelas personagens como exemplificação para as teorias de Bauman. Durante a leitura, ficou constatado que, embora o sociólogo faça a distinção entre seres redundantes e refugo humano, neste estudo todas as situações poderiam ser estudadas pelo prisma do refugo, pois a linha que divide as duas teorias é bastante tênue e o próprio autor da teoria admite que isso pode ser feito.
Nos contos, foram destacados exemplos e situações em que as personagens, através de palavras ou atitudes, demonstram que são tratadas pela sociedade não como seres humanos portadores de direitos e deveres, mas sim como seres desnecessários à produção de bens de consumo e, às vezes, como entrave à aquisição de novos bens por parte dos detentores do capital.
O livro Manual de Tortura é uma obra que oferece diversas possibilidades de leituras, tanto no âmbito literário, quando do sociológico e até do ponto de vista psicológico ou psicanalítico, mas neste trabalho, a opção foi fazer uma leitura ancorada nas teorias sociológicas de Bauman.


Referências
BAUMAN, Zygmunt. Vidas desperdiçadas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
________. Amor líquido. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
CANDIDO, Antonio. Ensayos y comentários. Campinas: UNICAMP, 1995.
_________. A personagem do romance. In: CANDIDO, Antonio. Et. al. A personagem de ficção. 11ed. São Paulo: Perspectiva, 2005. p. 51-80.
CALIMAN, Geraldo. Paradigmas da exclusão social. Brasília: Universa/UNESCO, 2008.
FERNANDES, Ronaldo Costa. Manual de tortura. Brasília: Esquina de Palavra, 2007.
FERNANDES, Ceres Costa. Surrealismo e loucura e outros ensaios. São Luís: EDUEMA, 2008.
GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do Conto. 9ed. São Paulo: Atica, 1999.
MARIA, Luzia de. O que é conto. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.

Artigo publicado na revista UFMA LITTERA 2010
José Neres é escritor e professor, com obra substanciosa nas áreas da ficção, poesia e crítica literária.




imagens retiradas da internet

segunda-feira, 14 de março de 2011

Um pouco de Anderson Braga Horta

Alaor Barbosa



Costumam historiógrafos e estetas dizer que as literaturas amanhecem com a poesia. A ficção vem depois. E por último a História. Em Brasília a literatura começou e aconteceu parcialmente de acordo com essa fórmula: a poesia começou com a cidade, mas a História também.
Os primeiros poetas que vieram para Brasília trouxeram em si um poderoso talento criador. O pioneiro acho que foi Antônio Carlos Osório, um advogado que chegou ainda na fase da construção (acho que em 1958). Ele veio do Rio Grande do Sul trazendo consigo, na garupa, o poeta que é. Quase ao mesmo tempo que ele, de perto de Brasília - de Jataí e de Goiânia -,  chegou o goiano  José Godoy Garcia. Os mineiros, que não podiam faltar, vieram já depois da inauguração: Joanyr de Oliveira e Anderson Braga Horta.
Feliz e privilegiado começo para a poesia de um lugar!
 Hoje falo de um dos livros de Anderson Braga Horta, um poeta mineiro de Carangola que passou parte da infância na Cidade de Goiás, um bom trecho da adolescência em Goiânia, um pedaço importante da juventude no Rio de Janeiro e se fixou para sempre em Brasília já no ano da inauguração. A densa consistência anímica de Brasília ele tem contribuído decisivamente para construir. É uma poesia fundadora de uma tradição que se revela poderosamente expressiva desde a sua fundação: a poesia de Brasília nasceu madura e plena.
Deve-se assinalar que na construção dessa tradição já rica da poesia de Brasília também colaboraram o pai e a mãe de Anderson com valiosas produções. O pai, Anderson de Araújo Horta, com o livro Invenção do Espanto; e a mãe, Maria Braga Horta, com o livro Caminho de Estrelas. Ambos os livros constituídos de poemas coligidos e editados, com filial carinho e respeito, pelo filho Anderson – que também nestes atos de publicar os poemas paternos e os maternos revelou a grandeza de sua alma de poeta.
A trajetória criadora de Anderson Braga Horta é abundante em criações poéticas de ótima qualidade. Alguns dos seus livros, além de Pássaro no Aquário: Altiplano e outros poemas (obra de estréia); Marvário;Incomunicação; Exercícios de homem; Cronoscópio; O Cordeiro e a Nuvem; Coloquio dos Centauros; Dos Sonetos na Corda de Sol; Pulso; Quarteto Arcaico; Fragmentos da Paixão: Poemas Reunidos; Antologia Pessoal; 50 Poemas Escolhidos pelo Autor.
Vou falar agora de um dos livros de poesia de Anderson Braga Horta.. 
 PÁSSARO NO AQUÁRIO é um pequeno livro com muita poesia. Dizer poesia é dizer boa poesia, pois má poesia poesia não é. A poesia de Anderson Braga Horta neste volume editado em 1990 por André Quicé Editor (pseudônimo comercial do escritor Alan Viggiano), de Brasília, apresenta esta característica própria da verdadeira poesia: diz verdades (não foi sem motivo que Goethe denominou sua autobiografia  Aus meinem Leben. Dichtung und Wahrheit, Da minha vida. Poesia e verdade.) com máxima economia de meios; revela o mundo em uma linguagem concisa, sem palavras inúteis ou desnecessárias. A coisa expressa é verdadeira, é a verdade do poeta. E dita com precisão.
Neste pequeno volume de ótima poesia, as verdades que diz são não digo autodefinições, mas autodescrições – confissões – em muitos poemas, e verdades da visão do mundo em outros. A linguagem é trabalhada, com o intuito de achar a necessária concisão. Repito: nem uma palavra a mais, nem uma palavra desnecessária. Da espécie de poemas confessionais, são perfeitos exemplos o poema que abre o volume, “Eus”, cuja primeira estrofe diz: “Nesta luta de mim contra mim mesmo / sou D. Quixote e sou meu Sancho Pança. / Não tão magro Rocinante, me levo. / E contra mins de vento / arremeto-me lança”; e o poema “Elegia de Varna”: “Sinto que algo ficou irrealizado em mim. / Nota que vibraria o meu ser íntegro como um sino / e que não se feriu. / Adivinho-lhe a corda oxidando-me o peito. / Tocá-la tornaria os veios de ferrugem / nos rios mágicos do êxtase / e então eu seria eu / e não esta véspera encolhida”. 
Não é só poesia que ele cria: há em sua rica bibliografia publicada contos e textos críticos. Sua obra crítica está principalmente em Testemunho e Participação (Ensaio e Crítica Literária e em Criadores de Mantras (Ensaios e conferências).
 Anderson é considerado, com unanimidade, um patrimônio fundamental da vida espiritual de Brasília.

ALAOR BARBOSA, jornalista e advogado, é autor de Contos e novelas reunidos e, inédito, A guerrilha da Serra de Caldas;  e dos romances Vozes e silêncios em Imbaúbas: a morte de Cornélio TabajaraMemórias do nego-dado Bertolino d’Abadia; Belinha: uma lenda; Eu, Peter Porfírio, o maioral; e, a sair, Vasto mundo. Membro da Academia Goiana de Letras e da Academia de Letras do Brasil e do Instituto Histórico e Geográfico do Distrito Federal.


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