segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Quatro textos sobre Drummond, Antonio Carlos Secchin





Meu encontro com Drummond

O primeiro Drummond a gente nunca esquece.
Nos manuais de português– estou falando do ensino da oitava série, antigo quarto ano ginasial, em 1965 - aprendíamos que “panapaná” era o coletivo de borboleta; “aliá”, o feminino de elefante; poetas de verdade eram Bilac e mais alguns outros, prudentemente falecidos, no máximo, até 1920.

A professora decidiu, então, nos apresentar a poesia moderna. Poderia ter começado com a delicadeza de Cecília Meireles, a simplicidade de Bandeira, o lirismo amoroso de Vinicius. Mas não. Para atingir seu alvo – fragilizar o que, em aparência, pretendia neutramente exibir – iniciou a leitura: “É preciso fazer um poema sobre a Bahia... /Mas eu nunca fui lá...”. Silêncio estupefato entre os alunos. Alguém ousou perguntar: “E o resto?”. E ela, já prelibando o efeito devastador: “Acabou”. Do silêncio à galhofa não se passaram mais do que dois ou três segundos. As gargalhadas explodiram quase uníssonas. Nós, que com Camões passávamos “ainda além da Taprobana”, agora, com um poeta modernista, não chegávamos sequer à Bahia!

Ao pinçar um poema-piada de Drummond, descontextualizá-lo e ridicularizá-lo em cerimônia pública, a mestra devia estar certa de que seu ardil nos afastaria do mau caminho dos modernos. Pouco tempo depois, frequentando a biblioteca de meu bairro, deparei-me com um exemplar de A rosa do povo. Com a curiosidade atiçada pelo episódio em sala de aula, levei-o emprestado: queria saber se a poesia de Drummond reduzia-se àquilo que eu ouvira, na versão maliciosa da professora. Enfrentei dificuldades no início, de tal modo era chocante o contraste entre tudo o que até então me fora apresentado como literatura e aquele conjunto de poemas, dotado de espantosa e densa linguagem. Embarquei numa inesquecível (a)ventura estética, descobrindo um mundo complexo e novo, a desdobrar-se em insuspeitados sentidos, para além do manual de boas normas da velha antologia escolar.

Não sei se, à época, alguns de meus colegas também contraíram o vírus modernista. Mas sei que a poesia daquele momento inundou minha vida inteira.



Quarteto

Mário amava Manuel que amava Carlos que amava João que não amava ninguém.
Mário se correspondia com todos, menos com João. João, com ironia, dizia ostentar orgulhoso troféu: o de único poeta brasileiro a jamais ter recebido uma carta de Mário.

Carlos julgava Manuel o maior, apesar de Manuel proclamar-se poeta menor.

Carlos se afeiçoou a João, que se dizia seu aluno. O primeiro livro de João foi dedicado a Carlos. O segundo, também. Carlos consagrou apenas um pequeno poema a João, mas foi seu padrinho nas primeiras núpcias. Também integrou o júri que em 1954 concedeu a João o mais importante prêmio literário do país.

Manuel, oriundo de Pernambuco, morou a vida quase toda no Rio de Janeiro. O paulistano Mário percorreu bastante o país, mas pouco foi ao exterior. Carlos, de Itabira do Mato Dentro, tampouco apreciava as viagens internacionais; esteve uma vez em Buenos Aires, em visita a familiares, e olhe lá. João, recifense e diplomata, correu o mundo: Europa, África, América. Mas, em sua geografia poética, sempre dava um jeito de retornar ao Nordeste e à Espanha. Não gostava do Rio, a contragosto residiu na cidade, bem diferente de Carlos, que não cessava de celebrá-la.

Mário, o arlequim modernista, morreu desgostoso poucos dias depois do carnaval de 1945, convicto de que sua geração fracassara. Manuel viveu por 82 anos, 5 meses e 26 livros, até ir-se embora para Pasárgada, bem-amado pelo público e pela crítica. Supunha que morreria meio século antes, mas, em país como o nosso, nada chega mesmo na hora prevista. A presença de Manuel foi captada em várias sessões espirituosas nas tendas de Paraty, no ano de 2009. Carlos afastou-se de João: ex-aluno que nunca escreveu um soneto e que detestava temas abstratos, acabou criando outra escola, na qual só franqueou a entrada de bem poucas lições do antigo mestre. João decidiu especializar-se na casa de máquinas do poema. Carlos optou pelas engrenagens da máquina do mundo. As minas de João eram do mais duro minério; a Minas de Carlos, do mais puro mistério.

Mário e Manuel acabaram solteiros. Carlos, viúvo. E João se casou com os poetas concretos, que não tinham entrado na história.


O dicionário devora o inseto

Às vezes, insetos devoram dicionários. O contrário, embora difícil, também pode ocorrer. “Áporo”, dizem Aurélio e Houaiss, significa “problema insolúvel”. Certo, mas pouco. Duas outras acepções da palavra, como veremos, foram engolidas pelos ilustres lexicógrafos.

“Áporo” é dos mais belos e ambíguos textos de A rosa do povo, de 1945, onde pululam poemas com grande teor de comunicabilidade. Leiamos: “Um inseto cava /cava sem alarme/perfurando a terra/sem achar escape.//Que fazer, exausto,/em país bloqueado,/enlace de noite/raiz e mistério?//Eis que o labirinto/ (oh razão, mistério)/ presto se desata:// em verde, sozinha,/ antieuclidiana,/uma orquídea forma-se”.

O impasse – registrado em forma interrogativa – está expresso na estrofe 2: parece não haver meio de o inseto escapar do quase inexpugnável bloqueio mineral. Ora, uma das lacunas dos dicionários reside no fato de que “áporo” também significa “inseto”; portanto, com um só signo, o poeta nomeia simultaneamente a extrema dificuldade de se escapar da prisão (“áporo 1”) e a figura do prisioneiro (“áporo 2”), o inseto. O esforço do animal em atingir a luz remete à luta do poeta para chegar à poesia, a partir da confluência, no país noturno de sua imaginação, das categorias da “razão” e do “mistério”, mescla do administrável e do imponderável presentes no ato criador.

De súbito, nas estrofes finais, a situação se inverte: desfeita a aparente aporia (pela ultrapassagem da escuridão), o inseto parece abeirar-se de inesperada flor, irrompida contra as leis tradicionais da representação do espaço: “em verde, sozinha,/ antieuclidiana,/uma orquídea forma-se”.

A questão, porém, é que o inseto não toca a flor: ele transforma-se nela. Com a ajuda de outro dicionário, o de Caldas Aulete, escavamos mais fundo para fazer aflorar um terceiro sentido de “áporo”: orquídea esverdeada. Assim, magistralmente, Drummond concentra os três sentidos no mesmo nome: o impasse, o agente que o desafia (o inseto, o poeta), e o resultado da luta: a orquídea-poema, nascida não das leis regulares da natureza, mas do poder fecundador da palavra poética.

Ao consignarem apenas uma acepção de “áporo”, alguns dicionários mataram o inseto e podaram a flor. Caso não recuperemos os dois significados banidos, a planta ainda floresce, mas o poema, certamente, se atrofia.

Pequeno Vasto Mundo

Um dos mais reiterados tópicos da poesia de Drummond é a tensão entre o mundo grande e o pequeno. No “Poema de sete faces”, ele declara: “Mundo mundo vasto mundo/ mais vasto é meu coração”. Apesar disso, já no texto seguinte, “Infância”, o poeta retorna célere para o espaço (e o tempo) da origem: “Meu pai montava a cavalo, ia para o campo”. A um título de livro de inspiração municipal (Brejo das almas, 1934), sucede outro de largo espectro: Sentimento do mundo (1940).

E assim vai ele, oscilando entre o pequeno e o vasto mundo. Quando, em 1945, publica A rosa do povo, Drummond parecia optar pela linhagem universalista, numa série de poemas vigilantes contra o horror nazifascista: neles, utopicamente, o poeta proclamava o advento de uma nova humanidade, depurada e fraterna. Todavia, clandestina a tantos versos de guerra bastante (sem trocadilho) bombásticos, captava-se também, no livro, uma voz em tom menor: “Sou apenas um homem./Um homem pequenino à beira de um rio. / Vejo as águas que passam e não as compreendo.” Ao lado do vate que profetizava uma sociedade em perfeita engrenagem coletiva, percebia-se um outro autor, duplo e avesso do primeiro, incapaz de explicar sequer a si mesmo. Assim, no contraste entre os dois “eus” que circulam nos textos, acabam igualmente brotando no livro duas espécies de flor: uma pública, rosa para o povo; e outra íntima, rosa para uns poucos: os excêntricos, os desvalidos, os poetas. Esta última não vinga em ameno jardim, mas eclode em meio a inesperada e inóspita paisagem urbana: “Uma flor nasceu na rua!/Passem de longe, bondes, ônibus, rios de aço do tráfego”. A empatia do escritor para com tais espécies, cultivadas à margem de espaços previsíveis, ou na estufa solitária da imaginação poética (“Carrego comigo/.../o pequeno embrulho./...será uma flor?), é claro sinal da inserção de Drummond no território do “mundo pequeno”.

Em sua obra, é inócuo entender de modo isolado os movimentos centrífugos e centrípetos, pois ambos vigoram na dependência e no refluxo das forças inversas a que tentam se opor. Em “América”, lê-se: “Uma rua começa em Itabira, que vai dar em qualquer ponto da terra”. Entre Itabira e o mundo, no meio da rua, tem um poeta. Nele, as cores da aurora e da noite – sua origem e seu destino – arduamente se tocam, tensamente se procuram, formando um terceiro tom, a que chamamos poesia.



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