quarta-feira, 7 de março de 2012

Dessemelhança, poema de Lenilde Freitas





Do lugar em que estou
vejo a calçada do outro lado
e um cachorro que passa
triste como quem fareja
a própria morte.
Aqui, enquanto dois relógios batem
dessemelhantes idêntica hora,
uma vespa insiste
rancorosos declives no vácuo
onde adivinho partículas
de poeira imitando cardumes
— pois só tenho olhos para uma coisa:
o cão subindo a rua
que, sendo a mesma, muda de nome
a alguns quarteirões daqui.


(retirado do site Algumapoesia.com, de Carlos Machado)




domingo, 4 de março de 2012

RUI e MACHADO, por Fabio Coutinho




Uma das mais belas peças de retórica da Literatura Brasileira é a oração de adeus de Rui Barbosa a Machado de Assis. Muita gente boa acha que vem a ser o melhor discurso de despedida jamais pronunciado em nosso país. Ora, direis, ouvir estrelas: era Rui exaltando Machado, ou seja, o notável advogado homenageando a memória do maior escritor do Brasil.

Mas o que disse Rui Barbosa naquela triste manhã de 30 de setembro de 1908, no Cemitério de São João Batista, no Rio de Janeiro ? Inicialmente, o registro da designação da Academia Brasileira de Letras para trazer ao amigo o "coração de companheiros". A partir daí, uma sucessão de reflexões sobre a existência e a obra de Machado de Assis, ressalvando, porém, que sua vontade era falar "senão do seu coração e da sua alma."

Com efeito, Rui assinala que o grande morto "não é o clássico da língua; não é o mestre da frase; não é o árbitro das letras; não é o filósofo do romance; não é o mágico do conto; não é o joalheiro do verso, o exemplar sem rival entre os contemporâneos da elegância e da graça, do aticismo e da singeleza no conceber e no dizer; é o que soube viver intensamente da arte, sem deixar de ser bom".

E prossegue na tocante reverência a Machado, fixando-o como "modelo de pureza e correção, temperança e doçura; na família, que a unidade e devoção do seu amor converteu em santuário; na carreira pública, onde se extremou pela fidelidade e pela honra; no sentimento da língua pátria, em que prosava como Luís de Sousa, e cantava como Luís de Camões; na convivência dos seus colegas, dos seus amigos em que nunca deslizou da modéstia, do recato, da tolerância, da gentileza. Era sua alma um vaso de amenidade e melancolia."

Perto de concluir o adeus a Machado de Assis, Rui Barbosa a ele se dirige, vendo-o a caminho da outra parte da eternidade: "Mestre e companheiro, disse eu que nos íamos despedir. Mas disse mal. A morte não extingue: transforma; não aniquila: renova; não divorcia: aproxima."

A oratória acadêmica de Rui engloba algumas outras pérolas, com a célebre Oração aos Moços (discurso na Faculdade de Direito de São Paulo, como paraninfo dos bacharelandos de 1920) e o Elogio de Castro Alves, por ocasião da celebração dos dez anos da morte do Poeta dos Escravos, em 1881. São passagens extraordinárias da vida nacional, verdadeiros marcos de nossa civilização tropical. Nada, porém, como o Adeus a Machado de Assis, um daqueles raros momentos da História em que ela é escrita ao mesmo tempo por quem parte e por quem fica, ambos contemporâneos do futuro.

A propósito de Rui Barbosa, vale sempre lembrar que 5 de novembro, data de seu natalício, é o Dia Nacional da Cultura. Sobre Machado de Assis, creio tratar-se da própria personificação daquilo que ele expressou a respeito da grandiosa Casa que fundou e de que foi o primeiro Presidente: é a glória que fica, eleva, honra e consola.



FABIO DE SOUSA COUTINHO, advogado e bibliófilo, é autor de biografias de Alfredo Pujol (2010) e Lafayette Rodrigues Pereira (2011), editadas pela Academia Brasileira de Letras.