sexta-feira, 30 de março de 2012

Adrienne Rich (1929-2012)




eu gosto do meu corpo quando é com o seu
corpo. É então completamente uma nova coisa.
Os músculos melhoram e os nervos mais.
eu gosto de seu corpo. eu gosto do que faz,
eu gosto de como faz. eu gosto de sentir a espinha
de seu corpo e seus ossos, e do tremor-
firmescorregadiamente que eu
novamente, novamente, novamente
beijaria, eu gosto de beijar esta e aquela de você,
eu gosto, lentamente acariciando a, acariciando a penugem
de sua pele elétrica, e o-que-é vindo
novamente anular a carne...
e os grandes olhos de amoresfarelado,
e possivelmente eu gosto da sensação
de você debaixo de mim então completamente nova.



(tradução: Ricardo Aquino)

(imagem retirada da internet: new york times)

quinta-feira, 29 de março de 2012

Millôr por Fábio Coutinho



Em julho de 2003, por encomenda dos Cadernos de Literatura Brasileira do IMS, o jornalista Sérgio Augusto aceitou um desafio e selecionou "as cem melhores frases do Millôr". Hoje, em homenagem ao grande artista que nos deixou na noite da última terça-feira, extraí, daquela esplêndida seleção, dez máximas, aforismos, pensamentos ou meditações que dizem respeito à atividade literária e suas cercanias. Aí vão, com muita saudade do inigualável mestre carioca:

foto oglobo



1. Um desses livros que quando você larga não consegue mais pegar.

2. Certos escritores se pretendem eternos e são apenas intermináveis.

3. Comida é bom, bebida é ótimo, música é admirável, literatura é sublime, mas só o sexo provoca ereção.

4. Conheço alguns escritores que morreram aos 30 anos e só conseguiram entrar pra Academia aos 60.

5. A Academia Brasileira de Letras se compõe de 39 membros e um morto rotativo.

6. Um escritor só é realmente famoso quando seus erros de linguagem passam a ser considerados erros gramaticais.

7. Todo homem nasce original e morre plágio.

8. Divagar e sempre.

9. O humorismo é a quintessência da seriedade.

10. Grande erro da natureza é a incompetência não doer.

Fabio de Sousa Coutinho

domingo, 25 de março de 2012

O sol nas feridas, Ronaldo Cagiano



por Adelto Gonçalves


O sol nas feridas é um inventário lírico da trajetória de Ronaldo Cagiano (1961), cobrindo um itinerário poético que começou em 1989, com a publicação de Palavra engajada, depois de sua saída da pequena Cataguases – “para não ficar menor que ela” –, passando por uma longa vivência em Brasília, até a sua recente transferência para São Paulo – “a metrópole apavorada e catatônica” – e viagens realizadas nos últimos anos a Portugal, Irã, Espanha e Argentina.

Em “Autorretrato”, as influências sofridas pelo poeta nesse trajeto são nítidas: desde os versos gonzagueanos – “Não tive ouro nem gado/ muito menos fazenda ou legado,/ mas sinto-me mal e compulsório,/ nesse rebanho catatônico,/ nesse estábulo funcional/ em que me lançou o destino” –, passando por reminiscências drummondianas – “Esse lugar em que me (des)habito/ fronteiriço do hospício e do calabouço/ é uma Itabira pesada demais,/ a pedra no caminho/ de josés sem agora” –, ou guimarãesroseana – “(...) reivindico a terceira margem/ esse rio que nunca dorme dentro de nós” –, até uma homenagem ao poeta argentino Juan Gelman.

Na poesia de Cagiano se percebe uma tensão entre o lirismo do autor e a realidade do advogado funcionário de uma instituição bancária que se manifesta em imagens obsessivas, como se constata em “Dia sem nome”, em que o poeta/burocrata reproduz o dia a dia em que vive: “Na estação de trabalho/ os colegas cumprimentam-se/ com a mesma frieza burocrática/ de todos os dias”. (...) Ah, como dói vê-los tão mecânicos/ tão protocolares/ tão passivos e sem ênfase”.

É o que se vê explicitamente em “Rotina bancária”: “Cafetões da vida bovina/ voyeurs do coito titânico e animal/ da busca de resultados/ do aumento da produtividade”. E mais ainda em “Dia sem nome” em que consegue extrair poesia da linguagem profissional – que até assustaria Mikhail Bakhtin (1895-1975), se o filólogo russo percebesse Português – que se ouve no dia a dia das reuniões em empresas privadas e estatais, eivada de expressões inglesas que poderiam muito bem ser substituídas por palavras do vocabulário lusófono, mas que ali estão apenas para dar àqueles que as pronunciam um pretenso conhecimento: “Precisamos estar focados/ Ser pró-ativos/ verificar a expertise/ startar novas ideias/ evitar retrabalho/ eliminar os gaps e gargalos/ racionalizar os procedimentos/ diminuir custos/ otimizar resultados/ aumentar a produtividade/ o envolvimento do grupo é fundamental/ a coesão da equipe é salutar para a performance/ o feedback é indispensável”.

II

Como todo grande poeta, Cagiano se volta também para o regional, para a sua infância. Nascido no interior de Minas Gerais, na mítica Cataguases, de Rosário Fusco (1910-1977) e os “verdes” e de Humberto Mauro (1897-1983), não disfarça a influência recebida de poetas imensamente mineiros e universais como Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) ou menos divulgados como Donizete Galvão (1954), a quem homenageia reproduzindo seus versos na epígrafe de “Ressonâncias”: “Nunca sai dessa Minas/ que não termina”. Nesse poema, é de Cataguases que lembra quando diz que “ainda ecoam/ na exilada memória/ os dobrados da Banda Municipal/ e a Maria Fumaça irrompendo/ com sua rouquidão metálica/ no breu imenso da noite”.

Tendo vivido boa parte de sua trajetória profissional em Brasília, onde se formou em Direito, o poeta também carrega no peito o cotidiano da “cidade sem esquinas” e traduz em versos a evocação mirífica de suas vivências no Planalto brasileiro, onde em meio à corrupção deslavada dos mais afortunados há ainda quem more em casas de chão batido e fossas sépticas a poucos quilômetros do Palácio da Alvorada: “seus botecos suas noites/ sua música seus automóveis/ seus escândalos suas feridas/ seu festim de esgotos no Paranoá”.

Nos poemas da maturidade, o poeta mostra a sua face de globetrotter, suas impressões de viagens. Em “Voo 7264”, fala da Paris sartreana e de outros tantos intelectuais para concluir que a Cidade-Luz pode lhe ensinar mais que todas as religiões. Em “Postal”, congela na imaginação uma Buenos Aires de cartão-postal: “Da calçada do Café Tortoni/ ouço um tango a espantar-me/ o tédio e a solidão: ele se irradia auspicioso/ pela Avenida de Mayo/ indiferente à sinfonia/ repetitiva dos semáforos,/ afrontando a anarquia das buzinas/ e as indelicadezas do trânsito”.

III

Outro tema recorrente na poesia madura de Cagiano é o de sua (má) relação com a religião – ou a ausência desta em sua vida, substituída pelo culto à literatura e aos seus nomes universais. É o que se vê em “Ad nauseam”: “Quando alguém vem falar de Deus/ dou-lhe as costas/ e abro um livro. Não creio em nada”. Ou ainda em: “Onde estava Deus/, quando Hitler avançou/ com seus coturnos, suas bombas/ seus campos de concentração/ sobre toda a humanidade?” Essa irreligiosidade se extravasa quando avança contra o “catolicismo pedófilo” e o “protestantismo mercenário”, porque “essa fé não beatifica,/ senão bestifica e aliena/ porque cevada no vazio/ na falsa panaceia/ que tropeça na falácia/ que trapaça na audácia/ de um deus onisciente e autoritário/ mas duvidoso/ e impotente”.

Ainda que o leitor não seja cético nem agnóstico como o poeta, não há como deixar de se identificar com a sua agonia diante de um mundo sem saída. Feita de desespero, a poesia de Cagiano se constrói com os tijolos e a argamassa de um cotidiano profundamente brasileiro e suas tantas feridas expostas não só ao sol, mas às chuvas tropicais que, periodicamente, derrubam morros, casas e edifícios mal construídos, em meio à indiferença de gatunos travestidos de autoridades. Essa agonia também se manifesta mesmo quando o poeta se põe a reproduzir a realidade de outros países, já que o faz sempre com um olhar verde-amarelo. Por isso, pode-se dizer sem medo de errar que Cagiano está entre os melhores poetas do Brasil deste começo de século XXI.

IV

Ronaldo Cagiano é escritor, ensaísta e crítico literário. Viveu em Brasília de 1979 até recentemente, quando se transferiu definitivamente para São Paulo. Publica em diversos jornais e revistas do País e do exterior, dentre os quais Hoje em Dia, de Belo Horizonte, Jornal de Brasília, Jornal Opção, de Goiânia, Correio Braziliense e Revista Cult, de São Paulo.
Obteve o primeiro lugar no concurso Bolsa Brasília de Produção Literária 2001, com o livro de contos Dezembro indigesto. Organizou as coletâneas Antologia do conto brasiliense (Projecto Editorial, Brasília, 2001), Poetas Mineiros em Brasília (Varanda Edições, Brasília, 2001) e Todas as Gerações - O Conto Brasiliense Contemporâneo (LGE Editora, Brasília, 2006).
Publicou ainda Colheita amarga & outras angústias (poesias, São Paulo, 1990), Exílio (poesia, São Paulo, 1990), Palavracesa (poesia, Brasília, 1994), O prazer da leitura, em parceria com Jacinto Guerra (contos juvenis, Brasília, 1997), Prismas – literatura e outros temas (crítica literária, Brasília, 1997), Canção dentro da noite (poesia, Brasília, 1999), Espelho, espelho meu, em parceria com Joilson Portocalvo (infanto-juvenil, Brasília, 2000), Dezembro indigesto (contos, Brasília, 2001), Concerto para arranha-céus (contos, LGE Editora, Brasília, 2005), e Dicionário de pequenas solidões (contos, Língua Geral, Rio de Janeiro, 2006).

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O SOL NAS FERIDAS, de Ronaldo Cagiano. São Paulo: Dobra Editorial, 2011, 152 págs., R$ 30,00. E-mail: contato@dobraeditorial.com.br Site: www.dobraeditorial.com.br

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003)