sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Tesouro da Juventude, Cortázar



      
 

 

      As crianças são ingratas por natureza, coisa compreensível, pois apenas imitam seus amorosos pais; assim, as de agora voltam da escola, apertam um botão e se sentam para ver a novela do dia, sem pensar um instante nessa maravilha tecnológica que é a televisão. Por isso não será inútil insistir ante os párvulos na história do progresso científico, aproveitando a primeira ocasião favorável, digamos a passagem de um estrepitoso avião a jato, para mostrar aos jovens os admiráveis resultados do esforço humano.

      O exemplo do jato é uma das melhores provas. Qualquer pessoa sabe, mesmo sem ter viajado neles, o que os aviões modernos representam: velocidade, silêncio na cabine, estabilidade, autonomia de vôo. Mas a ciência é por definição uma busca infindável, e o jato não demorou a ficar para trás, superado por novas e mais portentosas mostras do engenho humano. Com todos os seus avanços, esse aviões tinham numerosas desvantagens, até o dia em que foram substituídos pelos aviões a hélice. Essa conquista representou um importante progresso, porque voando a pouca velocidade e altura, o piloto tinha maiores possibilidades de fixar o rumo e de efetuar as manobras de decolagem e aterrissagem em boas condições de segurança. No entanto, os técnicos continuaram trabalhando em busca de novos meios de comunicação ainda mais vantajosos, e assim anunciaram consecutivamente dois descobrimentos capitais: referimo-nos aos barcos a vapor e à ferrovia. Pela primeira vez, e graças a eles, chegou-se à extraordinária conquista de viajar ao nível do chão com a inestimável margem de segurança que isto representa.


       Acompanhemos paralelamente a evolução dessas técnicas, começando pela navegação marítima. O perigo de incêndios, tão freqüentes em alto-mar, incitou os engenheiros a encontrarem um sistema mais seguro: assim foram nascendo a navegação a vela e mais tarde (embora a cronologia não seja garantida) o remo como o meio mais vantajoso para propulsar naves.
 

      Tal progresso era considerável, mas volta e meia os naufrágios se repetiam por diversas razões, até que os avanços técnicos proporcionaram um método seguro e aperfeiçoado de locomoção na água. Referimo-nos, é claro, à natação, além da qual não parece haver progresso possível, embora a ciência seja pródiga em surpresas.


       Quanto aos trens, suas vantagens eram notórias em relação aos aviões, mas foram por sua vez superados pelas diligências, veículos que não contaminavam o ar com a fumaça do petróleo ou do carvão e permitiam admirar as belezas da paisagem e o vigor dos cavalos de tiro. A bicicleta, meio de transporte altamente científico, situa-se historicamente entre a diligência e o trem, sem que se possa definir exatamente o momento de sua aparição. Em compensação sabemos, e isto constitui o último elo do progresso, que o desconforto inegável das diligências aguçou o engenho humano a tal ponto que não demorou a ser inventado um meio de transporte incomparável, o de andar a pé. Pedestres e nadadores constituem assim o coroamento da pirâmide científica, como se pode comprovar em qualquer praia ao ver as pessoas passeando pelo calçadão e observando satisfeitas, por sua vez, as evoluções dos banhistas. Talvez por isso haja tanta gente nas praias, pois os progressos da técnica, embora ignorados por muitas crianças, terminam sendo aclamados pela humanidade inteira, sobretudo na época das férias remuneradas.    
 
 
 
(Júlio Cortazar, Último Round, 1969)


(foto: radu belcin)

Nenhum comentário:

Postar um comentário