segunda-feira, 18 de março de 2013

Fabio Coutinho toma posse na Academia Brasiliense de Letras





FABIO DE SOUSA COUTINHO

 DISCURSO DE POSSE NA ACADEMIA BRASILIENSE DE LETRAS; BRASÍLIA, DF,14.3.2013

 

Quando Milton Campos faleceu, Carlos Drummond de Andrade, ninguém mais, ninguém menos, escreveu sobre o amigo morto: “Ele foi o homem que eu queria ter sido”.

       Sr. Presidente da Academia Brasiliense de Letras, Prof. Carlos Fernando Mathias de Souza, Sr. Presidente da Associação Nacional de Escritores, Dr. José Peixoto Júnior, ilustres confrades, querida família, caríssimos amigos, senhoras, senhores,
      Ao me candidatar à vaga de Waldemar Lopes nesta Academia, tive plena consciência da dimensão da empreitada, conhecedor que sou da biografia do incomparável sonetista e do edifício estético que ele construiu. O que não me ocorreu naquele momento foi a circunstância de que o patrono da Cadeira n° XIX é Castro Alves, nome que, por si, constitui caso único de amálgama de substantivo e adjetivo, representando o que há de mais importante poeticamente e mais relevante politicamente, na História da Inteligência brasileira.

       Deparei-me, portanto, com um desafio infinitamente superior ao que já sabia enorme, a exigir que me superasse, mesmo em ambiente de louvação. Tive presente, então, a título de lição a ser entendida e resolvida a contento, a máxima de um de meus maiores ídolos literários, George Bernard Shaw. Escreveu o sábio irlandês: “Há duas tragédias na vida. Uma é não conseguir o que deseja seu coração. A outra é conseguir”.
       Ora, tragédias se enfrentam. Elas nos arrastam a profundezas insondáveis, ou nós as carregamos como os degraus que devemos escalar na busca da coisa mais rara do mundo, viver, já que a maioria das pessoas apenas existe.
       Viver passou, assim, a dar o tom e o sentido desta homenagem a dois escritores, cidadãos e brasileiros invulgares, Castro Alves e Waldemar Lopes, este último nascido no mesmo ano de 1911 em que se completaram os quarenta anos da morte de nosso patrono na Academia Brasiliense de Letras.

       Sim, Antonio Frederico de Castro Alves nasceu na Bahia em 14 de março de 1847 e lá pereceu em 6 de julho de 1871. Foram apenas vinte e quatro anos, mas que outro patrício percorreu com tanta intensidade uma aventura vital tão curta? Vindo ao mundo no auge do regime servil, Castro Alves contra ele desde muito cedo se rebelou, tornando-se um jovem estudante de Direito, primeiro no Recife e depois no Largo de São Francisco, em São Paulo, que, orgânica e sistematicamente, o execrou, como evidencia o texto integral do assombroso OS ESCRAVOS, publicado postumamente, em 1883.

       No penúltimo ano de vida de Castro Alves, 1870, viera a lume outra estupenda obra poética, ESPUMAS FLUTUANTES, em que o imenso baiano cantou o lirismo que pontuava aquele período de nossa história literária, e que passou a situá-lo, com todos os méritos, ao lado de Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu e Fagundes Varela, como um dos expoentes geracionais do romantismo na poesia brasileira.
       Orador e poeta de virtudes superlativas, Castro Alves soube engajar-se na grande causa política e social de seu tempo, sem descuidar da própria razão de ser da humanidade, o amor, nas suas mais diversas manifestações, conferindo caráter de indissolubilidade ao elo criado entre sua vida e sua arte.

E é isso que se depreende do ensinamento invariavelmente clarividente de Antonio Carlos Secchin, que sentencia, em síntese irretocável: “(...) com a crescente especialização dos estudos universitários, o campo da palavra compartimentou-se em diversas áreas do saber, sem, todavia, abolir de todo o antigo vínculo que irmanava a palavra da tribuna e a palavra literária, cujo consórcio maior, em nossas letras, parece cristalizar-se no verbo candente de Castro Alves”.
          Como que a corroborar a lição lapidar do mestre carioca, ouçam-se os versos arrebatadores do canto V de O NAVIO NEGREIRO (Tragédia no Mar), em que o bardo extravasa seu inconformismo e sua revolta diante dos horrores que infestavam o transporte marítimo de povos africanos para o Brasil:

“Senhor Deus dos desgraçados!

Dizei-me vós, Senhor Deus!

Se é loucura... se é verdade

Tanto horror perante os céus?!

Ó mar, porque não apagas

Co’ a esponja de tuas vagas

De teu manto este borrão?...

Astros! noite! tempestades!

Rolai das imensidades!

Varrei os mares, tufão!

 

 

Quem são estes desgraçados

Que não encontram em vós

Mais que o rir calmo da turba

Que excita a fúria do algoz?

Quem são? Se a estrela se cala,

Se a vaga à pressa resvala

Como um cúmplice fugaz,

Perante a noite confusa...

Dize-o tu, severa Musa,

Musa libérrima, audaz!...

 

São os filhos do deserto,

Onde a terra esposa a luz.

Onde vive em campo aberto

A tribo dos homens nus...

São os guerreiros ousados

Que com os tigres mosqueados

Combatem na solidão.

Ontem simples, fortes, bravos...

Hoje míseros escravos,

Sem luz, sem ar, sem razão...

(...)”

Ao valer-se da persuasão retórica, sob forte influência de Victor Hugo, Castro Alves se colocou à frente de seus contemporâneos, impregnando sua poesia libertária dos sentimentos mais nobres, das perplexidades mais coerentes, da indignação mais fundada, enfim, a obra do abencerrage de Curralinho constitui-se, nos anos maculados que ainda marcariam nosso oitocentismo, na dicção da resistência, no discurso prodigioso da arte poética em face do incompreensível, do irracional, do intolerável.
       É certo que a altíssima poesia de Castro Alves não foi a primeira nem a única voz a condenar a face do regime imperial que humilhava e entristecia as noites dos lares brasileiros, mas seguramente deu, em tal mister, o toque decisivo que caracteriza os gestos induvidosos.

O inigualável baiano morreu no já citado dia 6 de julho de 1871. Em 28 de setembro daquele mesmo ano, como resultado direto e consequencial de sua empolgante militância abolicionista, foi promulgada a Lei do Ventre Livre. Ela passou a impedir que a descendência dos explorados, dos maltratados e dos desafortunados viesse ao mundo sob o jugo de uma aberratio naturae, de monstruosidade institucionalizada que persistia em manchar o processo civilizatório nacional. O passo seguinte, e definitivo, veio em 13 de maio de 1888, quando a Princesa Redentora assinou o ato formal que pôs o Brasil em dia com a História.

Exatos dezoito meses depois, esvaziada a Monarquia de um de seus pilares, chegou, vitoriosa, a República. Mas esta, não vou creditar a Castro Alves, não, porque fui educado e formado no princípio de que tudo na vida deve ter um limite, inclusive as mais incontidas admirações.

Meu notável patrono viveu breves, mas palpitantes vinte e quatro anos. Meu singular antecessor viveu noventa e cinco longos, igualmente intensos anos.

Waldemar Lopes foi poeta desde sempre, vez que LEGENDA, de 1929, saiu do prelo quando ele tinha apenas dezoito anos de idade. O reconhecimento da qualidade superior de seus sonetos veio muito tempo depois, com a inclusão de alguns deles na segunda edição da Antologia dos Poetas Brasileiros Bissextos Contemporâneos, organizada por Manuel Bandeira, em 1965. Por um longo período de cerca de quatro décadas, Waldemar dedicou-se, quase exclusivamente, a atividades jornalísticas e burocráticas.
             A volta do poeta ao livro ocorreu em 1971, com SONETOS DO TEMPO PERDIDO, que recebeu o Prêmio PEN Clube do Brasil. A partir daí, as obras se sucederam, incluindo incursões pela prosa ensaística.

Em Brasília, para onde veio na condição de Diretor do Escritório da Organização dos Estados Americanos, simultaneamente com o de representante de sua Secretaria-Geral junto ao Governo brasileiro, Waldemar Lopes teve oportunidade de desenvolver fascinante atividade intelectual.

Eleito para esta Academia, ocupou também a secretaria da instituição; foi vice-presidente da Associação Nacional de Escritores, a ANE que hoje nos abraça; durante quatro anos (dois mandatos) exerceu a presidência do Clube de Poesia de Brasília, de que é um dos fundadores; colaborou com o Conselho de Cultura da Capital Federal, na condição de membro das Comissões Julgadoras dos concursos cujos prêmios eram distribuídos por ocasião dos Encontros de Escritores, que reuniam intelectuais de todas as unidades da Federação. Em suma, o próprio Waldemar considerava esse período de Brasília o mais fecundo de sua vida, no plano literário, a começar pelos livros que nele publicou.
             Ao alcançar os sessenta e cinco anos, em 1976, desligou-se da OEA, atingida que fora a idade-limite estabelecida no regulamento da Entidade para o seu pessoal ativo. Chegara, então, a hora de realizar outro sonho: o de fixar residência definitiva na sua querida Teresópolis e lá esperar a visita da “indesejada das gentes”.

Na bela cidade da serra fluminense, desenvolveu uma atuação ímpar, bastante lembrada e exaltada. Por seis anos, exerceu a presidência da Academia Teresopolitana de Letras; promoveu cursos e concursos, visando, sobretudo, a estimular as novas gerações no gosto das letras; levou a Teresópolis escritores de nomeada, do Rio, de São Paulo, de Brasília, de Belo Horizonte – entre eles, numerosos membros da Academia Brasileira de Letras -, para que realizassem conferências sobre temas e assuntos literários; por incumbência do Governo local, reorganizou e presidiu o Conselho Municipal de Cultura. Atuou, em todas essas frentes, como um fiel seguidor do pensamento do filósofo espanhol José Ortega y Gasset, segundo o qual “A cultura é uma necessidade imprescindível de toda vida, é uma dimensão constitutiva da existência humana, como as mãos são um atributo do homem”.

Ao deixar Teresópolis, em 1984, para atender ao desejo de sua esposa Iracy, que sonhava retornar ao seio da família, em Pernambuco, para ali morrer, Waldemar doou à cidade doze mil livros de sua biblioteca particular, composta de dezessete mil títulos!

No Recife, prosseguiu no cultivo da amizade e da literatura, transformando sua casa em ponto de encontro de escritores, que para lá acorriam, em romaria, ao generoso Sabalopes, na busca da palavra sapiente e serena de companheiro cujo caráter se firmava sobre duas sólidas e inabaláveis pilastras, que o tornavam um ser humano elevado: o amor e a poesia.
           Em termos inspirados, Vieira de Melo definiu a pessoa de Waldemar Lopes: “Esse pernambucano estranho, aparentemente tão normal, tão convencional, tão igual a todos nós, uma espécie de São Cristóvão passado a limpo por São Francisco de Assis, é na realidade uma colônia de almas, uma antena de visões e sensações finíssimas, por assim dizer inapreensíveis”. E o saudoso Cyl Gallindo, escritor da simpatia de muitos de nós, em Brasília e no Recife, resumiu: “Sobre gente do quilate de Waldemar Lopes, afirma-se : é um homem completo”.

         A obra poética de Waldemar ostenta impressionante fortuna crítica, traduzida numa seleção do que de mais sério se produziu em nosso país, no fértil terreno das letras.

         E, dentre tantos, fico com a palavra a um tempo culta e erudita de Abgar Renault, que viu em Waldemar Lopes o renovador do soneto em nossa língua, e com o  depoimento sem paralelo de Manuel Bandeira, para quem “Os SONETOS DO TEMPO PERDIDO (...) representam poesia da melhor escrita no Brasil.”
           E aqui está a prova, como convém a um leitor e admirador incondicional, tirada de CINZA DE ESTRELAS, cujo lançamento, em 2001, assinalou o nonagésimo aniversário do autor, em 1º de fevereiro daquele ano:

 

 

LIÇÃO ANTIGA

Entre as filas de verde um homem vem e vai:
na moldura rural, o seu vulto pequeno

sob o capote escuro. Esse vulto é o do Pai,
a irrigar o pomar, no aclive do terreno.


Facho desfeito, o sol sobre a paisagem cai
e a água rebrilha, branca. O céu, azul-sereno,

faz-se um canto de luz que flutua e se esvai

na asa leve da brisa. O dia esplende, pleno.


E tudo o Pai esquece, a regar as raízes:

a vida quase ao fim, o corpo a definhar,
a insônia, a tosse rouca, a febre, as hemoptises.


Seu legado será esta lição perfeita:
se a morte se aproxima, é tempo de plantar;

outros farão depois a festa da colheita.

Meu exemplar de CINZA DE ESTRELAS possui a seguinte dedicatória, pérola de modesta coleção de autógrafos: Aos queridos “amigos de infância” Elizabeth e Fabio, afetuosa lembrança de sua vinda alegre ao Recife em junho de 2004. Com o fraterno abraço do Waldemar.
            Sr. Presidente,

             Este 14 de março, Dia Nacional da Poesia, traduzindo a mais justa das homenagens ao inexcedível Patrono da Cadeira n° XIX, é data muito cara a um simples, mas inveterado, leitor de poemas, pois também homenageia dois outros esplêndidos vates de nossa pátria poética, meu próprio antecessor nesta casa de cultura e o amigo que primeiro me incentivou a nela ingressar, Anderson Braga Horta. Em sua rica e abrangente biblioteca, com a amabilidade e a fidalguia que lhes é inerente, D. Célia e Anderson há anos me acolhem de portas e braços abertos. Tanta lhaneza acabou gerando a iniciativa do convite que fiz ao Anderson para que me recebesse, aqui e agora. O coração tem razões que a razão reconhece.

Registro, ainda, que estão hoje, entre nós, para minha felicidade, alguns colegas e amigos de adolescência, juventude e início de advocacia no Distrito Federal de meu nascimento, o Rio de Janeiro dos bairros do Jardim Botânico, do Leblon e de Botafogo, da Lagoa Rodrigo de Freitas, da Praia do Arpoador, do Colégio e do Mosteiro de São Bento, da Faculdade de Direito da Rua do Catete, do Lamas, do Teatro Municipal, do Estádio Mário Filho, do Fluminense Futebol Clube e de tantas outras maravilhas cuja enumeração taxativa poderia instalar o enfado em hora reservada tão–só à convivência amena.

Srs. Acadêmicos, sra. Acadêmica,

Ao me abrigar em seu convívio, V. Exas. dignificaram uma vida dedicada à bibliofilia, à palavra impressa, à paixão da leitura, ao reconhecimento de que os livros, máxime os clássicos, aqueles que nascem e permanecem contemporâneos, permitem fazer a existência menos vulnerável aos estorvos do quotidiano e, em alguma medida, não tão avassaladoramente sartreana, naquilo em que nos ensejam isolar as mazelas e a miséria que perpassam as trajetórias de todos e de cada um. 

Epigrafei esta oração acadêmica com passagem antológica de uma figura central de nosso modernismo, Carlos Drummond de Andrade. Com ela, busquei transmitir a essência da homenagem que minha alma genuinamente brasileira devia a um grandioso patrono baiano, Antonio Frederico de Castro Alves, e a um formidável predecessor pernambucano, Waldemar Freire Lopes.

A exemplo do que tenho feito constante e prazerosamente ao longo dos últimos quarenta anos de infindáveis e compensadoras leituras poéticas, pois “um poema deve ser uma festa do intelecto”, como disse Paul Valéry, recorro a outro magnífico bardo, cujo centenário de nascimento os brasileiros festejaremos, ao longo deste ano, para, em paráfrase de estrofe de célebre soneto, revelar a todos os que aqui vieram, a quantos acá não puderam estar, e mesmo àqueles que não mais pertencem a nosso espaço físico, que

         De tudo,  à gratidão serei atento
                    Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto

        Que mesmo em face do maior encanto
                    Dela se encante mais meu pensamento.

A meu honrado e venerado antecessor, declaro, alto e bom som, para que, esteja onde estiver, ouça, reconheça e guarde: Waldemar, velho querido, você é o homem que eu continuo querendo ser.
            Obrigado.