terça-feira, 22 de setembro de 2015

O último telefonema à mãe, poema RCF


 
O dom de falar ou ouvir como se voz não existisse
e tudo fosse um pensamento apenas, um pensamento
que já existisse pronto para repetir a frase que será
dita e será ouvida e apenas quero sussurrar aos pensamentos
surdos dela que a amo e que não me deixe, porque a perco
em carne e osso como se ela andasse com a mão estendida
de socorro, dormisse com a mão estendida de socorro
e nem ouvido e mão eu pudesse alcançar, como se mão
também tivesse perdido, pensamento e audição, fosse mão
vazia e inútil, supor  os objetos no escuro e caminhar
na vida como quem caminha num quarto escuro,
não o quarto escuro que trazemos a vida toda dentro
de nós, mas o quarto escuro que cada dia é mais escuro,
e no lusco-fusco da vida apenas sussurrar-lhe eu te amo
final e triste como alguém de madrugada certifica-se
que há alguém do outro lado da linha e da vida:
quantos alôs dizemos vida afora como se a vida
fosse sempre dizer que se está presente, uma eterna
sala de aula que dela nunca escapamos e, aprisionados,
apenas repetimos o que a matéria por si só já provaria:
estamos aqui, de corpo e alma presente, até na morte,
quando estaremos mais presentes e como nunca
mais ausentes e, assim, a vida como sala de aula
e um infindável telefonema poderemos sussurrar
ao mundo que estamos aqui até a última chamada
e o telefone desligar.                                                              








(do livro Memória dos porcos. Rio: 7Letras, 2012)




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