quinta-feira, 22 de outubro de 2020

A máquina das mãos no jornal O Estado de Minas


ESTADO DE MINAS GERAIS

André Di Bernardi Batista Mendes



Ronaldo Costa Fernandes marca seu lugar no cenário da poesia contemporânea

A Editora 7 Letras acaba de lançar A máquina das mãos, do poeta, romancista e ensaísta Ronaldo Costa Fernandes. A poesia do maranhense radicado em Brasília transita e percebe o trágico a partir do simples, do cotidiano. Sua áspera letra já nasce torta, desce da descoberta das inúmeras e indissolúveis fraudes de que é feita a tessitura do duro dia-a-dia, que não concede espaço e é, sempre, amplo de controvérsia e clausura. Mas, transido, fortalecido pelo mistério de um olhar extremamente sensível, são grandes os nacos de fascínio que encontra na gravidade que desliza, por exemplo, das telas do pintor americano Edward Hopper: “A vida como um quadro americano/ do qual não podemos escapar”.


Sua linguagem e seu estilo simples atingem façanhas de desnorteios (“Entre o sim e o não/ não existe o talvez./ Entre o sim e o não/ existem as palavras cruzadas’’) e também concede, oferece, com a desfaçatez e o descaramento de um bandido consciente, o estímulo necessário para o primeiro e extremo passo rumo aos desatinos sobre os conhecimentos e desconhecimentos da sempre estranha e inalcançável natureza das coisas. Tudo no seu estado mais bruto. “Eu não aprendo a natureza./ Pergunto uma e outra vez seus nomes,/ e, na chamada, não me respondem.” Pobre leitor, pobre poeta que se debruça, louco para “sabatinar as árvores”, as “buganvílias desavisadas” e as “quaresmeiras duras”.
Não há vanguarda que dê conta do recado no inusitado âmbito poético. O cabresto das instituições, a cara fechada das academias, a moda dita, exige, com seu chicote ridículo, um poema curto, enxuto, low profile. Aí chega um artista, um escritor contemporâneo, e apresenta os seus longos poemas simples, adivinhando, arbitrário, provocativo, que o futuro pode ser um corredor: “Que dia virá o futuro/ com seu longo pescoço de ânsia?”. Pessimista, cínico, Ronaldo descortina um futuro simplesmente branco, branco como uma tela em branco, branco como o papel pode ser apenas branco.
Os bons poetas marcaram um encontro com a vida. E Ronado chegou na véspera. Mas ele também encontrou nestes tropeços a sua boa parcela, a sua cota de danação pelo caminho. Em seu livro, Ronaldo visita os demônios de Bosch (“Há morte e morbidez no amor’’); adula o seu roteiro de esquecimentos (“Tudo é um imenso galpão vazio”); faz poema para e sobre arames (“Há mãos farpadas/ que não ouso tocar”) e não deixa de corajosamente encarar a dor extrema, inigualável, ao tentar decifrar o alfabeto dos suicidas, num dos poemas mais belos e incisivos do livro (“Suicídio é o cano de escape/ com que respiramos,/ a fuga para dentro de si/ como o peixe que pula/ para a prisão do ar livre”).
Não é preciso paciência para ler os poemas de A máquina das mãos. Não é preciso condescender, anuir para encontrar fruição. Dono de um “olfato dos que cheiram a finitude das coisas”, Ronaldo dá notícia dos extremos que sobram. A sua poesia é feita de pequenos intervalos, de portos, de refúgios sempre provisórios. Nestas brechas cabem carros sem gasolina, rodoviárias onde inexiste a delícia da viagem, algaravias desenfreadas, cartas, a dura vida das putas, becos, febres, mormaços, fotografias e a dimensão inexata de uma alma que se revela linear, mas ambivalente, sempre por meio da dor. No ordinário Ronaldo descobre “a agulha da beleza”, para ele, “a realidade só não acusa o inconsciente”, que aí já seriam outros quinhentos.
Os poemas de A máquina das mãos, em sua maioria, padecem de uma melancolia que se justifica na medida em que revelam a face crua do, digamos, real verdadeiro, que, despido das bobagens de um lirismo fácil, revela que qualquer canto quase sempre desafina, que a verdade não existe, que existem margens que impressionam pela brutalidade e pelo desencanto. Entre a falta e o excesso, Ronaldo sabiamente cobra a fatura e aprende a rir de tudo e de si mesmo, deste seu, deste nosso “ato vazio de nada pegar”. Carece de poesia, pode ser leve o breu que nos envolve.
Como bem anotou Hildebrando Barbosa Filho, no posfácio do livro, a poesia de Ronaldo é também feita de “impurezas e epifanias”. A tormenta das estradas fornece um amplo repertório e munição para uma voz que se estende para que, algum dia, algumas janelas e todas as gaiolas se abram. Ronaldo apura o seu olhar e o seu canto poético que pretende ser, apenas, “um caminho entre caminhos”.



A MÁQUINA DAS MÃOS
De Ronaldo Costa Fernandes
Editora 7 Letras, 104 páginas, R$ 28


Canto do castigo
(trecho)

Há dias que não consigo
aprender minha pouca matéria.
Só tenho um ano
repetente, oclusivo, recorrente:
o ano em que me reprovei.
Já fui mais
quando tinha menos corpo.
Se o corpo se alonga,
quem negará que a mente
ganha gordura, extensão e músculos?



imagem retirada da internet: Hopper, summer evening

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