quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

Ana e Gregório, Fabio Coutinho

 
 
 
                                                                                                                                                                                                           “O passado nunca morre; ele nem é passado.”
                  (William Faulkner)
 
 
Em sua estreia na prosa de ficção, Ana Miranda felicitou os leitores do Brasil e de Portugal com BOCA DO INFERNO (1989), romance cuja ação transcorre na Bahia colonial do século XVII. Passados 25 anos daquele auspicioso lançamento, a escritora cearense volta a centralizar sua pena luminosa na figura do soteropolitano Gregório de Matos. Agora, trata-se de MUSA PRAGUEJADORA, uma biografia do poeta setecentista barroco que até hoje, mais de três séculos decorridos de sua morte, ainda encanta pela atualidade política e pela qualidade inexcedível de sua fatura lírica.
 
No auge da plenitude ficcional, Ana Miranda vai muito além da mera reprodução factual da agitada aventura vital de Gregório de Matos Guerra. MUSA PRAGUEJADORA é, sim, biografia no sentido literal do termo, mas também, graças à engenhosidade da Autora, obra de lavra romanesca, em que o genial personagem é celebrado com as honras atribuíveis aos autenticamente valorosos, aos que souberam dar à existência sentido elevado, que a justifica de sobejo – a luta incessante pelas liberdades e o combate sem trégua ou recuo aos (insaciáveis) poderosos de momento.
 
A leitura das apaixonantes quinhentas páginas de MUSA PRAGUEJADORA traz à mente, em recordação que me parece justa, o majestoso OS SERTÕES, no qual Euclides da Cunha igualmente produziu um misto de reportagem e ficção, fazendo pontificar a personalidade heroica de Antonio Vicente Mendes Maciel, o Conselheiro (cearense de Quixeramobim).
 
Há cerca de um ano, Ana Miranda dera a lume SEMÍRAMIS, romance de natureza epistolar e biográfica, em que avulta José de Alencar, o primeiro dos grandes ficcionistas pátrios oriundos do Estado do Ceará. Numa empreitada de fôlego muito maior, a estupenda escritora homenageia, em seu novíssimo livro, outro gigante da literatura em língua portuguesa, bardo de virtudes pessoais, intelectuais e estéticas raras vezes alcançadas em nossos cinco séculos de tradição literária. Nas palavras da própria autora, os ficcionistas são historiadores que fingem estar mentindo, e os historiadores, ficcionistas que fingem estar dizendo a verdade.
 
Ana Miranda, também artista plástica de recursos prodigiosos, é, novamente, a responsável pela capa de MUSA PRAGUEJADORA, trabalho de fascinante riqueza visual, unindo, num mesmo volume, literatura e arte em níveis de inspiração superlativa.
 
A Autora já foi premiada, entre outros, com o importante Jabuti, da Câmara Brasileira do Livro; teve sua obra traduzida em diversos países e para inúmeros idiomas; um de seus livros, DESMUNDO, foi adaptado para o cinema e transformado num belo filme nacional; enfim, Ana Miranda convive, há tempos, com a consagração INTER VIVOS, e, não obstante tal circunstância, persiste na trilha da entrega infatigável a seu ofício, atributo marcante dos artistas verdadeiramente imortais.
 
Segundo a lição imperecível de Jacob Burckhardt, “A História é a poesia em escala mais ampla.” MUSA PRAGUEJADORA, formidável poema em prosa, evidencia que Ana Miranda é atenta leitora e clarividente narradora da História, a exemplo de seu monumental biografado baiano.