quarta-feira, 27 de maio de 2015

Os ventos gemedores, Cyro de Mattos



   ‘Os ventos gemedores’: saga do Brasil arcaico                                                                                      Adelto Gonçalves (*)

 

                                                           I

 

No Brasil, sempre foi assim: a luta pela terra invariavelmente produziu heróis falsos e mártires verdadeiros. E o Estado sempre esteve ao lado dos mais fortes, aqueles que conseguiam pela força subjugar os demais. Para aqueles que venciam, nunca faltou a falsa pena dos escribas para legalizar suas conquistas nos papéis dos cartórios e incensá-los na História. Ainda hoje é assim: os mandões do sertão ganham placas e viram nome de fundações ou de ruas, avenidas ou rodovias. Já para os derrotados sobram – quando muito – uma vala sem lápide e o esquecimento eterno.

Sempre foi assim, desde os tempos dos chamados bandeirantes, homens mestiços, filhos de mães indígenas ou miscigenadas, que largavam tudo na cidade de São Paulo ou em vilas como Santana do Parnaíba e Taubaté para, a partir de Araritaguaba (hoje Porto Feliz), seguirem em canoas à frente de uma legião de índios carijós, mulatos e negros em busca de indígenas que pudessem ser escravizados, de ouro e pedras preciosas e mais terras. Como arrastaram as fronteiras do Brasil para além do Tratado de Tordesilhas, hoje, alguns desses régulos são homenageados com estátuas e monumentos em que aparecem como homens de feições brancas, bem trajados. Provavelmente, seguiam para os sertões descalços e quase semi-nus, como os indígenas  e africanos que comandavam.

Ainda hoje é assim. Volta e meia, algum parlamentar é acusado de manter trabalhadores sob regime escravo em suas fazendas. De outros dizem que, em suas terras, ninguém entra sem autorização: se alguém entrar, ainda que involuntariamente, será recebido à bala por modernos jagunços bem armados, enquanto o mandão desfila sua onipotência em Brasília ou mesmo em congressos lusófonos em Lisboa. Os mandões modernos já não são grosseiros como os de outros tempos: afáveis, conquistam o interlocutor com muita simpatia e salamaleques.

E, assim, o mundo arcaico convive com o Brasil moderno sem maiores sobressaltos. É esse Brasil arcaico que o leitor vai encontrar no romance Os ventos gemedores, de Cyro de Mattos (1939), que acaba de ser lançado pela editora LetraSelvagem, de Taubaté-SP, em sua coleção Gente Pobre (narrativas). Ambientada nas terras do Sul da Bahia em época que se supõe que seja a de meados do século 20, a trama se dá no condado imaginário de Japará, à la William Faulkner (1897-1962), região onde a mata até então impenetrável começa a dar lugar às primeiras roças de cacau e pastos para bois e vacas. É o cenário de Terras do Sem Fim (1943), clássico romance de Jorge Amado (1912-2001), que, a rigor, inaugura a saga cacaueira do Sul da Bahia.

 

                                               II

Aqui, a luta pela terra coloca, de um lado, Vulcano Brás, um régulo do sertão acostumado a mandar bater e até matar; de outro, o vaqueiro Genaro, escolhido como líder pelos explorados, gente envelhecida precocemente que traz a pele engelhada pelo trabalho de sol a sol. Como Almira, moradora de um casebre, que procura entender, numa espécie de monólogo interior, como o vaqueiro Genaro encontrou coragem para chefiar os homens no levante:

“(...) Ele havia dito que os homens estavam dispostos a enfrentar o despotismo de Vulcano Brás, “não tenha medo, dessa vez, a gente vai tirar o freio da boca, a argola da venta, o chicote das costas e a espora da barriga”. Deu-lhe em seguida a notícia de que os homens queriam ele como chefe do levante, ela então teve medo, pensou na morte a espreitar pelos cantos todos eles, de dia e de noite”.

Depois, Almira questiona: “Que adianta fazer esta revolta, Genaro? O lado de Vulcano Brás sempre foi mais forte”. Mas ele responde “A pior derrota é daquele que não luta”, acrescentando que “onde ninguém faz nada contra Vulcano Brás só a vontade dele é a única que impera, e os que se agacham permanecem assim mesmo o tempo inteiro, trabalhando, trabalhando, sem nunca ter nada na vida”.

Ainda hoje é assim não só Sul da Bahia, mas em todo o Brasil: aqueles que trabalham na terra só costumam se aposentar aos 65 anos de idade, isso quando conseguem apresentar papelada reconhecida pelos sindicatos rurais que comprove o tempo de trabalho na roça. Para ganhar salário mínimo.

O final deste livro conta a batalha corpo a corpo entre os jagunços de Vulcano Brás e os homens de vaqueiro Genaro e – ao contrário do que normalmente se dá na vida real – a vitória dos explorados, apesar das baixas de lado a lado. A vitória maior, porém, que se registra é da Literatura Brasileira que sai desse romance mais enriquecida.

                                  

                                               III

 

Nascido em Itabuna, ao Sul da Bahia, Cyro de Mattos conhece bem a região que retratou em seu romance. Foi ali que fez os primeiros estudos, concluindo o curso ginasial no Colégio dos Maristas, em Salvador. Depois, fez o curso de Direito na Universidade Federal da Bahia, concluindo-o em 1962. Hoje, é advogado aposentado, depois de militar durante mais de quatro décadas nas comarcas da região cacaueira na Bahia. Antes, atuou como jornalista no Rio de Janeiro, passando pelas redações do Diário de Notícias, Jornal do Comércio e O Jornal.

Contista, ensaísta, cronista e poeta, é autor também de livros de literatura infanto-juvenil e organizador de várias antologias. Já publicou mais de 50 livros e obteve numerosos prêmios literários. O principal foi o Prêmio Nacional de Ficção Afonso Arinos, da Academia Brasileira de Letras, para o livro Os Brabos (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1979), romance elogiado por Jorge Amado, Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e Alceu Amoroso Lima (1893-1983).  

Sua estréia, porém, ocorreu em 1966 com o livro Berro de fogo e outras histórias, em que já se anuncia a sua preocupação em denunciar “a decadente engrenagem econômica cacaueira dominada pelo coronelismo”, como observa Nelly Novaes Coelho, professora titular de Literatura Portuguesa da Universidade de São Paulo (USP), autora do posfácio que constitui um texto-homenagem aos 40 anos (1966-2006) da carreira literária do autor. Para a professora, “a obra de Cyro de Mattos já conquistou seu lugar nos quadros da Literatura Brasileira contemporânea”.

Cyro de Mattos está incluído na antologia Narradores da América Latina, publicada na Rússia, ao lado do argentino Julio Cortázar (194-1984) e do uruguaio Mario Benedetti (1920-2009), entre outros. Seus poemas foram incluídos na antologia Poesia do Mundo 3, organizada por Maria Irene Ramalho de Sousa Santos, da Universidade de Coimbra, publicada em Portugal, que teve tradução para o inglês.

Em 2010, participou da Feira Internacional do Livro de Frankfurt, quando autografou a antologia poética Zwanzig von Rio und andere Gedichte, publicada pela Projekte-Verlag, de Halle, com tradução de Curt Meyer-Clason, tradutor de Guimarães Rosa (1908-1967). E em 2013, esteve presente ao XVI Encontro de Poetas Iberoamericanos da Fundação Cultural de Salamanca, na Espanha. Tem livros publicados em Portugal, França, Alemanha e Itália.

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Os ventos gemedores, de Cyro de Mattos. Taubaté-SP: Editora LetraSelvagem, 208 págs., R$ 30,00, 2014. Site: www.letraselvagem.com.br

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de Os vira-latas da madrugada (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981), Gonzaga, um poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002), Bocage – o perfil perdido (Lisboa, Caminho, 2003) e Tomás Antônio Gonzaga (Academia Brasileira de Letras/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012), entre outros. E-mail: marilizadelto@uol.com.br