sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

No país dos macacos, Ubaldo Moriconi



A SAGA DA IMIGRAÇÃO ITALIANA NA PENA COMPROMETIDA DE MORICONI
Ronaldo Costa Fernandes 

O grosso da imigração italiana ao Brasil se estende de 1880 a 1930.Ela inicia-se logo após a unificação da Itália (1861), quando não se havia sedimentado de todo o sentimento de nação e a identidade nacional comportava várias culturas regionais.  Da parte da Itália, já são por demais sabidas as causas da imigração: a economia abalada pelas guerras de independência e unificação, superpopulação, desemprego, fome e o fechamento da entrada de novos imigrantes italianos nos EUA que era o principal destino da grande leva de europeus.

O pico da imigração italiana coincide com a publicação deste livro de Ubaldo A. Moriconi. Católicos e brancos, os italianos eram imigrantes preferenciais, segundo a aspiração de eugenia, expressa ou subjacente à ideologia preponderante no Brasil.

                A imigração italiana não ganhou unanimidade. Mesmo na Itália, avanços e retrocessos travaram uma luta surda que mexia com a autoestima do povo. A classe dominante temia perder mão de obra e abrir-se uma supervalorização das terras. Diante do quadro de abandono e miséria, muitos optaram por construir a América. Armadores genoveses, por exemplo, eram a favor de que seus compatriotas buscassem melhores oportunidades de trabalho, renda e posse de terra num país, ora apresentado como inamistoso, ora acolhedor e terra da promissão.

                Em 1888, o governo italiano promulga a lei da liberdade de emigração ou de fazer emigrar contingente significativo do povo. Só em 1901, depois de protestos e de manifestações contra a condição dos pobres italianos em terras estrangeiras, o governo aprova lei que especifica e dá as diretrizes para regulamentar as ações dos agentes migratórios e a criação do Comissariado da Emigração.

                Mais liberal que outros países europeus em relação à migração, a Itália precaveu-se apenas duas vezes. Entre março de 1889 e julho de 1893, em consequência da epidemia de febre amarela que grassava em nosso país; e de setembro de 1893 a maio de 1894, alegando a guerra civil no Rio Grande do Sul, destino final de grande número de imigrantes italianos.

                Moriconi não é o único italiano que escreve sobre o Brasil dessa época. Alfonso Lomonaco, com o livro “Al Brasile” (1889), e Ferruccio Macola, com o volume “L’Europa alla conquista dell’America Latina“ (1894), o acompanham na aventura de escrever e pretensamente descrever o Brasil que se lhes descortina diante de seus olhos europeus.

                Para Lomonaco, seus conterrâneos exerciam ofícios menores e laboriosos. Reclama que até mesmo os negros libertos se recusavam a trabalhar nessas labutas humildes e degradantes. Acusa, contudo, uma falta de união entre seus patrícios, o que contribui para a exploração de mão de obra dos imigrantes italianos. E, ainda como bom aluno da escola taineana da influência da raça, do meio e clima, registra que esta última não é propícia aos estrangeiros, além de ser daninha à índole dos italianos.

                Já Macola era um conservador político, irrequieto e provocador. Conde, jornalista (aos 23 anos era diretor do periódico Secolo XIX), nascido no Vêneto, encara a imigração à América Latina como um projeto colonial. Viajou ao Brasil como deputado com o propósito de testemunhar a emigração italiana in loco. Antes aliado de Crespi, desligou-se do primeiro-ministro. Aporta no Brasil em 1883. Acusa o governo italiano de ser inoperante na questão de organizar o fluxo migratório para o Brasil.

                Em meados da década de 1880, duas sociedades representantes dos interesses imigratórios disputavam a primazia e proposta sobre o tema. A Sociedade Central de Imigração, orquestrada por dois grandes nomes (Alfredo d”Escragnole Taunay e André Rebouças), por intermédio de vários expedientes, entre eles um jornal mensário, era contra a imigração massiva subvencionada. Desejavam uma imigração seletiva, com vista à criação de uma pequena e média classe de proprietários camponeses. Já a paulista Sociedade Promotora de Imigração estava mais interessada pela mão de obra para as lavouras. O certo é que o governo central utilizou-se de ambos os propósitos, ou seja, ao mesmo tempo em que provia de mão de obra o campo, promovia e incentivava a propriedade produtiva oriunda dos imigrantes mais habilitados.

                Entre 1885 e 1894, o fluxo imigratório está em seu nível mais elevado. E para tanto o governo nacional utilizava-se das agências de captação de imigrantes. Pagava-se por cabeça, além de subsidiar transporte e propaganda aliciadora na origem do imigrante. Contudo, de 1896 até 1897, restringiu-se ao Estado de São Paulo a importação de imigrantes. Assim Lazzarini, em seu livro “Campagne Venetto ed Emigrazione di Massa” (1866-1900), observa que “as facilidades (de modo particular, a viagem gratuita) tiveram a função de tornar concretamente realizável o êxodo em massa do Vêneto”. São os anos de ouro. Em 1892, existiam 30 agências e 5 172 subagentes trabalhando no agenciamento de grandes levas de italianos para o Brasil.

A emigração do ponto de vista da Itália
Vista por muitos como a solução para diminuir a pressão social (Moriconi mesmo fala em avanço das ideias socialistas), a questão emigratória não tinha consenso na Itália. Grande parte dos proprietários temia a escassez de mão de obra e a valorização da terra. Categorias trabalhistas também participavam do debate e utilizavam sua força de pressão. Os armadores genoveses, cujos navios serviam à massa emigratória, apoiavam as medidas do governo que impulsionavam seus negócios. É de 1888, como assinalamos, contudo, a primeira lei que normatiza o livre exercício do fluxo emigratório. E logo em 1889, como aqui já foi apontado, devido à epidemia de febre amarela, o governo italiano coibirá a emigração para o Brasil, medida que, dois anos depois, será alterada (17 de julho de 1891). Em 1902, a Itália proíbe a emigração subsidiada. Coincidentemente, comenta Angelo Trento (Do outro lado do Atlântico. São Paulo: Nobel, 1989), “num período em que os Estados Unidos haviam demonstrado ser capazes de absorver sem problemas grandes cotas de nossa mão de obra”.

                Curiosa também a observação sobre a origem da emigração italiana dentro do próprio país. Vênetos e friulanos e, ainda em menor número, mas significativa, a presença da Lombardia, configuram as regiões dos italianos das primeiras grandes levas que aportam aqui. A Emília e a Toscana, entre 1887 e 1902, também têm sua representatividade nesse fenômeno. Os do sul da Itália viriam para os grandes centros urbanos, enquanto os acima assinalados miravam o sul do Brasil, principalmente alojando-se no campo. A Sardenha tem número aproximado a zero e a explicação dos estudiosos é que o isolamento e a ausência de tradição em emigrar resultavam nesse contingente minguado. Já os oriundos da Sicília, da Romanha e Marcas não gozavam de boa imagem; pelo contrário, eram vistos como arruaceiros e rebeldes. Franzoni (Franzoni, A. Pel Decoro del Nome Italiano in America, Milano, 1901, citado por Trento) afirma: “Os fazendeiros, criados na época da escravidão, não podem tolerar os altivos calabreses: querem um colono humilde, servil, submisso; e parece que encontram nos vênetos o que eles procuram.”

                E Moriconi também aponta:


                “Hoje, quase todos os vapores que partem para o Brasil com carregamento de emigrantes italianos têm o contingente mais forte formado por vênetos, enquanto antes o formavam os meridionais. Porém, desde a época em que o Governo Federal do Brasil abandonou o serviço de imigração aos Estados Unidos, muitos destes proibiram a imigração turca e napolitana, compreendendo nesta última categoria todos os italianos das províncias meridionais.”


                A destinação dos italianos era para o campo no Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. Em São Paulo, para as fazendas de café ou para os centros urbanos, notadamente a capital. Outros dois estados também acolheram os imigrantes: Minas Gerais e Espírito Santo. E o Distrito Federal. Para o Rio de Janeiro convergiam os oriundos da Cosenza, Potenza e Salerno. Nápoles, Caserta e Calábria também engrossaram o fluxo para a capital do país, geralmente exercendo o comércio ambulante de peixes, aves, legumes, frutas, vassouras, jornais e mercadorias diversas e miúdas. Alia-se a estas atividades as de engraxate, amolador, sapateiro, barbeiro, marceneiro, enfim uma gama grande de ofícios manuais. Mais tarde, o que não é o propósito deste prefácio, apareceram jornalistas, artistas e maestros, mas essa é outra história e a perspectiva do século XX, enquanto estamos nos atendo somente ao período sobre o qual escreve Moriconi.

                Apenso ao projeto de esvaziamento da panela de pressão social que o desemprego e a miséria provocavam na Itália combalida, existia também o objetivo de criar no ultramar uma colônia italiana que servisse de consumidora dos bens produzidos em sua pátria de origem. A Itália imaginava que pudesse haver uma expansão comercial com a criação de novos e cativos mercados, principalmente nas exportações para o Brasil.

                O certo é que esse projeto comercial não deu certo senão nos primeiros anos. Logo os imigrantes trocavam a importação de produtos italianos por aqueles produzidos aqui mesmo. Não contava a Itália que o fluxo de exportação carecia de mecanismos confiáveis, além do precário sistema de transporte.

                Havia entre os defensores da emigração italiana aqueles que advogavam por uma partida de italianos mais bem educados, técnicos que assumiriam cargos diretivos nas fábricas brasileiras e assim poderiam privilegiar os produtos italianos. Esse era um esboço atrapalhado de um neocolonialismo e/ou expansionismo que via nas relações comerciais a possível dependência entre os dois mundos: a Europa produtora e a América Latina dependente e consumidora.


Destino: São Paulo
O maior contingente de emigrantes italianos se dirige a São Paulo. “Dos quatro milhões de estrangeiros entrados no Brasil entre 1886 e 1934, 56% foram absorvidos por essa região” (HOLLOWAY, T. H. Immigrantts on the land: Coffee and society in São Paulo 1886-1934, Chapel Hill, 1980, citado por Trento). Se, contudo, restringe-se a estatística aos períodos de 1887 e 1902, que é mais próximo ao tema deste livro, teremos o percentual de 63,5.

                Os municípios que mais acolheram os italianos foram os que estavam ao longo das ferrovias Mojiana e Paulista, a rota do café. Chegavam a Santos e, embarcados em trem, seguiam para a capital. Iam curiosos, debilitados, sobreviventes, cheios de esperança e medo. A Hospedaria dos Imigrantes, pertencente à Sociedade Promotora, acolhia-os no bairro do Brás. A distância entre as fazendas e o afluxo permanente e generoso da mão de obra que viria render aqueles rebeldes e insatisfeitos seriam as causas da dispersão dos imigrantes (que, só mais tarde, com o aparecimento de periódicos italianos e/ou a agremiação em fábricas urbanas trariam maior união de interesses).

                As já observadas más condições de trabalho, as multas, os salários baixos ou atrasados, a dependência do dono da fazenda, o endividamento com compras feitas em armazém do proprietário, moradias precárias e tratamento degradante eram as características gerais que formavam um quadro vivo e pungente das dificuldades iniciais e quase impossibilitavam os imigrantes a criar um pecúlio que os faria fugir dessa roda perversa da fortuna.

                Contudo, já em 1890, poderiam ser encontrados italianos proprietários de terra, entre eles a curiosa aparição de três padres.

                Durante o período da imigração houve deserção, volta à Itália e outros fenômenos migratórios como a reemigração, ou seja, muitos deixavam a Argentina, principalmente no fim do século XIX em razão da crise naquele país, e ingressavam no Brasil criando um difícil registro para as estatísticas. Por outro lado, contratados para serem trabalhadores nas fazendas de café, abandonavam o campo e migravam para as cidades. O secretário de Agricultura queixava-se para seu governador à época, o presidente da província Teodoro Dias, que “apesar de todas as seguranças introduzidas no contrato, [...] depois de chegados às hospedarias”, recusam-se a aceitar a colocação na lavoura. “A consequência é o crescimento extraordinário da população proletária das cidades, principalmente da capital” (Relatório anual apresentado ao cidadão dr. presidente Dr. Theodoro Dias de Carvalho Júnior, 1895, São Paulo, 1896).

                Em 1894, 82% dos que se alojavam na hospedaria do Brás trocaram as agruras da lavoura pela incerteza da cidade grande. O presidente Campos Sales (que tragicamente teve um irmão assassinado por “crime de honra” por um imigrante italiano), em jantar em sua honra oferecido pelos italianos, registra em seu discurso:


                “Não existe trabalho lícito, não há setor de considerável produção: agricultura, comércio, indústria, ciências, letras, artes, finanças, não há movimento de sociabilidade em que o italiano não esteja ao lado do brasileiro, partilhando esforços e resultados, dores e alegrias, com a única natural diferença de capacidade, de recursos e sorte de um ou do outro lado [...]. Visto de outro ângulo, e nem por isso menos significativo, a quem pertencem as maiores empresas industriais de nosso país? Aos italianos. A quem pertencem tantas e tantas afamadas instituições comerciais e bancárias? Aos italianos. Quem contribuiu em maior número para o nosso já poderoso organismo proletário? Os italianos. E todos vivem, trabalham e prosperam em louvável fraternidade com nossos patrícios.”


                De mascate a dono de lojinha. Muitos dos imigrantes, desgostosos com o campo ou mesmo aqueles que se dirigiam à lavoura, lançavam-se na aventura urbana. Desempenhando funções humildes e servis, desde engraxates a distribuidores de pão e jornal, o italiano imigrante também tinha como sua principal atividade a arte de mascatear que disputavam com os chamados turcos. Morse observa que o mascate percorria trilhas e rotas ingratas, usando como meio de transporte mulas, percorrendo fazendas, empreendendo vendas ou trocas (MORSE, R.M., Formação histórica de São Paulo, São Paulo, 1970). “Seu sonho de todos os momentos era adquirir capital para abrir um pequeno armazém de artigos generalizados numa estrada movimentada do interior e finalmente estabelecer-se com loja ou fábrica numa cidade, idealmente São Paulo.” É daí que vem a expressão, que Moriconi abomina, de carcamano, ou seja, aquele comerciante que se utiliza de pressão na balança para aviltar o peso: “calcar a mão.”

                Alemães, ingleses e portugueses eram donos dos grandes negócios. Os italianos dedicavam-se aos ofícios menores como pedreiros, sapateiros, alfaiates, cocheiros, cavadores, caldeireiros e muitas outras profissões assemelhadas. Em 1894, os quatrocentos lixeiros de São Paulo falavam com sotaque italiano. Trento chega a dividir as profissões por zonas italianas de emigração. Assim campânios, lucanos e calabreses eram ambulantes, carregadores, engraxates e cocheiros; os piemonteses dedicavam-se ao ofício de cavadores; os toscanos caracterizavam-se pelo pequeno comércio de verduras; já os do norte da Itália se ocupavam de ofícios manuais – os artesãos.

                Os grandes magnatas como Matarazzo, dedicado inicialmente ao comércio de importação e, mais tarde, oferecido à sociedade como exemplo de perseverança, self-made man, assim como muitos outros, não eram os pobres imigrantes que vinham na terceira classe nos navios. Pertenciam àqueles oriundos da classe média italiana que já imigravam com algum capital para investir. E o mesmo se deu, com pequenas diferenças biográficas, com outros mitos do sucesso italiano em São Paulo, como Alessandro Siciliano (fundador da Companhia Mecânica e Importadora e o Banco Ítalo-Brasileiro); Antonio Januzzi na construção civil e Giuseppe Martinelli, fundador, em 1917, da companhia de navegação Lloyd Brasileiro.

                Trento observa que a integração do imigrante italiano foi bem realizada e são raros os momentos de conflito coletivo. Assinalam-se os anos de 1892 e 1896 como aqueles de verdadeiro enfrentamento e crise. No primeiro caso, relata a prisão de um comandante de um navio atracado em Santos que morreu dias depois, depauperado pelos maus-tratos e vítima de febre amarela. “Esse foi sinal de grave desordem: outros exaltados organizaram uma contramanifestação, que, ao grito de ‘Morra Itália! Morram os italianos’, começou a percorrer a cidade, insultando, batendo: foram assaltados jornais italianos e nasceram conflitos, alguns até sangrentos” (RANGONI, D. Il Lavoro collettivo degli Italiani al Brasile).

                O conflito de 1895-1896 refere-se também à Marinha italiana e à febre amarela. 117 mortes da tripulação do navio Lombardia, entre eles o capitão. O governo italiano chegou a pensar numa expedição naval contra o Brasil. O certo é que os governos de ambos os países se estranharam e a crise diplomática refletiu-se na população até ser assinado, em 19 de novembro de 1896, o protocolo final De Martino-Cerqueira, com estipulação de multa de 4 mil  contos de réis para o Brasil.

                Mesmo com outros incidentes isolados e menores, “a rapidez de assimilação dos italianos em relação ao novo ambiente e a facilidade com que o mundo brasileiro acolheu e fez próprios alguns dos hábitos e costumes trazidos pelo imigrante” favoreceram a absorção do elemento estrangeiro no Brasil. Ainda segundo Trento: “Mesmo que essa tese pareça demasiado otimista, não há dúvida de que a integração dos italianos na sociedade brasileira foi muito maior e mais veloz do que na sociedade norte-americana, por exemplo.”


No país dos macacos, de  Moriconi
Visto por estudiosos como etnocêntrico, racista e intransigente, Ubaldo A. Moriconi relata o país que viu no fim do século XIX e que, ainda hoje, causa certa indignação dos leitores que ao livro têm acesso. Impregnado dos conceitos mais gerais sobre antropologia e sociologia, dentro do espectro mais conservador, inclusive com toques de determinismo e ideias já há muito desacreditadas como as de Lombroso, Moriconi não se propôs a fazer um livro sobre essas disciplinas. Ocorre que, ao introduzir temáticas candentes como colonização, raça e clima, o italiano envereda perigosamente numa senda das mais condenáveis.

                A antropologia, a etnografia e a sociologia, na época de Moriconi, grosso modo, dividiam-se entre evolucionistas e aqueles que buscavam não a essência da origem humana, mas um modo de proceder, isento de julgamentos e hierarquia entre culturas. Ou seja, Moriconi, do ponto de vista científico, estava defasado. O que acontecia então com o italiano? Imbuíra-se de uma ideologia corrente, ordinária e oligárquica. Sem nem mesmo ter contato com o escopo científico do fenômeno racial e cultural, o jornalista Ubaldo Moriconi reproduzia, de segunda mão, um complexo conjunto de opiniões que estavam na cabeça de seus mais conservadores contemporâneos, de qualquer que fosse a nacionalidade.

                Moriconi era apenas um jornalista com uma visão parcial e comprometida que escrevia sobre o universo que presenciava, utilizando-se de números inexatos (diga-se de passagem, reconhecidos por ele). Sem método científico, baseando-se na sua experiência, o que já comprometia a análise, o italiano esboçava um painel pleno de lugares-comuns, de uma visão reduzida, limitada por seu conhecimento na área em que atuava como “observador”.

                Visto como mais um livro de viagem – que não o é – podemos entender Moriconi como um desbravador que, sem rigor, descrevia a sociedade que estava diante dos seus olhos. Ora, essa “ingenuidade” científica valia para os primeiros viajantes que aportaram no Brasil, como, por exemplo, entre inúmeros outros, os capuchinhos Claude D’Abeville e Yves d’Évreux que deram as primeiras notícias sobre a povoação do Maranhão e fizeram um verdadeiro estudo etnológico das populações indígenas. A terminologia de livro de viagem cabe muito apertada no livro de Moriconi como quem veste um número menor de roupa.

                Chegado no navio Orénoque, logo imediatamente depois da Proclamação da República, Moriconi é um espírito inquieto e perscrutador. Jornalista e intelectual, logo funda uma revista ilustrada. Mais tarde, em São Paulo, em 1894, dirige o jornal italiano Il Messaggero. Em 1895, tem sua experiência mais forte ao servir ao governo de Minas Gerais, trabalhando no serviço de imigração de seus conterrâneos. Todo o tempo que passa no Brasil vai registrando na memória os casos, recolhendo dados, verificando condições dos colonos na lavoura ou mesmo o turbilhão nascente de imigrantes nas grandes metrópoles de Rio e São Paulo.

                A publicação de Nel Paese de’ “Macacchi”, no ano de 1897, mostra um autor rigoroso com os hábitos de seu povo e crítico com o país que o recebe. A proposta é proporcionar ao leitor italiano, seja ele autoridade, seja o candidato a emigrante, uma justa visão do processo emigratório e as condições de trabalho, sobrevivência e também uma descrição do comportamento (da psicologia coletiva) do homem brasileiro e da sociedade em que os dois, italiano e brasileiro, estarão inseridos. Em seu próprio parecer, Moriconi acredita estar fazendo um serviço de utilidade pública, principalmente ao cobrar do governo italiano determinadas medidas que favoreceriam a entrada de italianos, sua instalação em solo brasileiro e até mesmo, em termos comerciais, um aumento de exportação de produtos in natura ou beneficiados para a grande população de imigrados italianos, cujo mercado era dominado por produtos alemães, ingleses e franceses.


Para voltar ao início
Ubaldo Moriconi, como já foi dito, aporta no Rio de Janeiro logo imediatamente após a proclamação da República. Observa que não havia movimentação, agitação, manifestação pública de apoio à Monarquia ou mesmo um ambiente revolucionário. Aquele é o primeiro motivo para que ele afirme a inépcia, indiferentismo, preguiça, lassidão e ignorância do povo brasileiro. Na verdade, o italiano não dirá nada distinto do que foi afirmado por vários brasileiros e registrado por nossos historiadores: o povo não teve participação direta nos movimentos republicanos e a troca de sistema de governo lhe foi indiferente.  A República foi um ato da elite e do Exército que reclamavam mudanças de governo e não propriamente mudanças estruturais. Os historiadores a chamarão de República Velha, a oligarquia continuará a participar das decisões de um país agrário que acabara de perder a mão de obra escrava.  Passados os primeiros momentos ditos revolucionários e um pouco exaltados na imprensa, logo os antigos colaboradores da Monarquia serão chamados para compor o quadro administrativo do país por falta obviamente de especialistas em várias áreas do novo governo.

                Estudado tanto por pesquisadores das ciências sociais, o livro de Moriconi já teve até mesmo crítica da linguística, que lhe fez a exegese do discurso contaminado pelo racismo. A análise do discurso viu num texto que não precisa muito para escamotear o seu deslavado preconceito contra o Brasil, uma forma de opressão e visão do europeu que nos observa como povo primitivo e atrasado. Moriconi, contudo, apesar das claras manifestações de desagrado à sujeira, insalubridade do clima tropical e das cidades empesteadas pela febre amarela e outras doenças tropicais, tem por trás de seu discurso outro tipo de ideologia mais escamoteada e velada nos entretextos do volume que escreveu.

É curioso, antes de adentrarmos em questões mais sérias, o comportamento do italiano quando recebe o mesmo tratamento que deu ao Brasil. E, tomado por um patriotismo cego, renega em si o que acusou no outro. O visconde de Ouro Preto, diz ele, sob pseudônimo havia escrito um “livreco” sobre a Itália, intitulado Recordações da Itália, “escrevinhado à base de inexatidões e de malignidade”. O visconde escreve que o exército italiano não passava de “trupe teatral e de parada”, o que foi o bastante para que o espezinhado Moriconi acusasse o visconde de “leviandade e incompetência”.


O pensamento da oligarquia
A visão do brasileiro como mistura de raças e uma perspectiva pouco alentadora do processo civilizatório brasileiro está estampada em letra de forma de vários pensadores e escritores brasileiros. Mesmo Euclides da Cunha, no início de Os sertões, não via com bons olhos o futuro de um tipo mirrado, raquítico e doente. Esta concepção do brasileiro miscigenado que não tem futuro estará presente até mesmo já entrado o século XX e exposto como teoria por, entre outros, Monteiro Lobato com seu Jeca Tatu, infestado “por um zoológico em suas entranhas”, ao se referir às doenças endêmicas do nosso caboclo.

                Dito por um brasileiro, soará como lavar a roupa suja em casa e pensar o Brasil verdadeiro (embora saibamos que estavam eivados de preconceitos, mesmo Euclides, no mesmo livro, mudará de opinião e transformará o sertanejo na frase já célebre de que é antes de tudo um forte). Dito por um estrangeiro, inclusive um observador que teve pouco tempo para analisar a composição étnica, política, social e ideológica do povo brasileiro, soará como ofensa e preconceito a um país jovem com boas perspectivas de crescimento.

Mas Moriconi não é original em suas observações sobre o Estado, o homem, a cultura e a sociedade brasileira. Para ficar com seu próprio texto, é interessante observar que um dos nossos mais consagrados pensadores, Joaquim Nabuco, também irá expressar na mesma época os mesmos juízos do italiano. Diz Nabuco, em seus Discursos Parlamentares:


“A esta categoria [de portugueses condenados, hebreus, boêmios zíngaros, a flor da escória daquela época] podem-se juntar os descendentes dos mamelucos e dos caboclos, resultados de cruzamentos como as várias tribos indígenas; cruzamentos que fisicamente não deram origem a um tipo muito feliz...”

“Os negros puros (...) vão sempre diminuindo sob os abraços do elemento emigrado português, que vive em concubinato com a virgem negra, dissolvendo a raça, e engrossando as filas da falange mulata. Aliás, é o único serviço que presta o português, o qual, açambarcador do pequeno comércio e ávido de dinheiro, é considerado como o vampiro do país.” (p.16)


Amigo de Bilac e outros intelectuais brasileiros, Moriconi na verdade teve pouco tempo para deixar que seu pensamento borbulhante e investigativo em relação ao processo migratório pudesse gerar um conhecimento específico e diversificado. Abeberou-se do pensamento mais corrente e contraditório que havia ao seu redor. É certo que certas experiências traumáticas como o cólera que infesta e devasta o grupo de italianos albergados em Juiz de Fora, uma experiência humana limite e arrasadora emocionalmente, contribuiu e muito para sua avaliação do papel do Estado brasileiro e descaso das autoridades italianas.


Amor e ódio
É muito comum o elogio à natureza em detrimento ao ambiente cultural. Há beleza em países da África, América do Sul e Ásia, mas suas culturas estão atreladas ao passado ou expressam um primitivismo bom para etnólogos mas não para o progresso da ciência ou o futuro dos povos. Esse tipo de observação foi muito frequente no passado e – pasmem – continua a pertencer ao repertório de muitos analistas amadores do campo social. Moriconi elogia a nossa baía de Guanabara, as montanhas do Brasil meridional (“a região Sul é temperada e goza de um clima delicioso; [...] ótimas para o cultivo dos cereais e para a criação de animais”), o sistema hidrográfico (“a obra mais bela da criação”), magníficos portos marítimos e os saltos e cascatas do São Francisco são “mais belas e mais imponentes do que as do Niágara”, a serra dos Órgãos e muitas outras paisagens, meio ambiente e clima.

                Mas a natureza humana é preguiçosa, carreirista, os homens empertigam-se em ternos europeus e suam debaixo de tecidos pesados numa rua fétida chamada Rua do Ouvidor e outras adjacentes onde se podem encontrar lojas de produtos finos ao lado de mercearias ordinárias. A febre amarela ceifa a vida dos pobres imigrantes italianos. O Rio de Janeiro favorece um clima insalubre (curioso que muitos higienistas brasileiros também acreditavam que o ar não circulava a contento na capital do país, propiciando o aparecimento de epidemias fatais). A psicologia do brasileiro é a do “esperto”, admiram os corruptos por serem mais “malandros” (a palavra é de Moriconi), os nacionais são superficiais, verborrágicos e vaidosos, mantêm hábitos pouco higiênicos (o que também condena nos imigrantes italianos), as mulheres não sabem se comportar em sociedade e comem sem educação, mesmo aqueles e aquelas que estão inscritos na nobreza da terra.

                Aqui e ali se observa algum comentário exagerado, fruto talvez do cacoete do jornalista que quer chamar atenção ao seu trabalho. A natureza em Moriconi é um Jano com duas faces opostas: se por um lado é exuberante e fértil, por outro é demoníaca e assassina como a febre amarela e o cólera. Neste último aspecto, ele chega a afirmar que na bela natureza do Rio pode-se ter um calor de 40 graus que fulmina o caminhante. Diz ele: “... o termômetro atinge não raro os 40 graus à sombra, e onde os raios do sol, no verão, são tão ardentes que podem fazer cair fulminado o caminhante”.

                Ainda dentro do espectro da contradição, Moriconi condena a imprensa brasileira por ser provinciana e viver de fatos sociais menores e pagos. Fatos íntimos, restritos a batizados, formaturas, casamentos e outros eventos assemelhados, que não deveriam estar em páginas de periódico. Chega inclusive a observar que muitos jornais brasileiros em língua italiana foram influenciados pela imprensa brasileira, tomando o hábito e o abuso de não apenas publicar matéria paga, mas também de usar uma linguagem chula, ameaçadora, divulgar boatos e injúrias. O que demonstra a declaração de Moriconi: o italiano abrasileira-se até mesmo numa atividade mais nobre que a do camponês. Como se o mal fosse apenas brasileiro, como se na imprensa internacional – e até mesmo na Itália – na passagem do século XIX para o XX não houvesse o mesmo fenômeno. De qualquer forma, em outras passagens do livro, elogia “a liberdade sem limites” da imprensa brasileira e os “jornais saem todos à hora prometida e as grandes iniciativas comerciais multiplicam-se vertiginosamente”. Chega a citar três ou quatro publicações brasileiras com um grau de excelência europeu.


O homem cordial
Há uma recaída no fenômeno de absorver as ideias que circulavam na classe dominante brasileira. Moriconi, antes de Sérgio Buarque de Holanda, que cita Ribeiro Couto, acata a percepção de que o homem brasileiro é gentil e que as classes sociais convivem sem conflitos.


“Afirmo, com toda segurança, que não existe outro país que iguale o Brasil na simplicidade e urbanidade de todas as classes de cidadãos, sem distinção de raça e condição. Ali até o último serviçal, escravo até há poucos anos, é tratado pelo seu patrão ou pelos companheiros com a máxima urbanidade e com o título de senhor. E isto é tanto mais notável como se a escravidão não tivesse durado ali, por vários séculos, sem deixar-lhes profundas e sujas raízes.”


A prodigalidade e a hospitalidade são prodígio do povo brasileiro. Até hoje permanece no inconsciente coletivo nacional a ideia de que somos acolhedores e afáveis, o povo simpático e hospitaleiro. Mas, se o povo é de tão boa índole (para usar uma palavra que pertence ao campo semântico da afetividade e instinto), por que então as mulheres são tão mal educadas, os homens superficiais e emproados, o povo indolente e malandro? O próprio Moriconi não se formula esta pergunta pela simples razão de que ele não percebia que se contradizia.

E assim segue nosso observador e diligente jornalista: Petrópolis tem o clima úmido e nocivo (embora não explique sua noção de nocivo). Mas Teresópolis (na mesma serra, cidades gêmeas) não. “Teresópolis é suprida de excelente água potável e dotada de terras bastante férteis”. E o Dedo de Deus, elevação escarpada, vista pelos visitantes ao longe, “nenhuma localidade da Suíça supera”.

Ubaldo Moriconi elogia o exército brasileiro (“o luxo com o qual são equipadas as tropas de cada arma”), São Paulo (o clima, a cidade, a terra a ser plantada, a indústria, a riqueza hidrográfica, as ferrovias, a paisagem), o Rio Grande do Sul (“campos fertilíssimos”, “o caráter enérgico do povo”), entre outras observações positivas. Sobre o italiano, concomitantemente, mesmo entre elogios, também emite opiniões negativas eivadas não apenas de preconceito, mas de erro de perspectiva. Além de absorver a ideologia da classe dirigente (que ele também elogia e renega), Moriconi não detém os instrumentos de sua época para uma análise etnográfica, sociológica ou antropológica.

Quanto às autoridades brasileiras e italianas, Moriconi igualmente investe seu elogio e desaprovação. Em certos momentos, mostra acertos e boas intenções do governo central (quase sempre despreza as administrações estaduais), aprova leis e medidas do Brasil em relação à emigração e acusa de descaso, incúria, incompetência e desorganização o aparelho de Estado. Tratamento semelhante dá ao governo italiano que ele desejaria mais atento ao problema da emigração. Para ele, o governo deveria selecionar os emigrantes e não enviar camponeses analfabetos, sujos e despreparados, quando não enviar feito gado um grupo de malandros e trabalhadores inservíveis. Critica leis e medidas também emanadas do governo italiano, assim como oferece estratégias de seleção, envio e adaptação ao imigrante ao chegar ao novo país que o acolhe.


“Seria concedida a viagem sem pagamento, de suas localidades aos portos de embarque e dali até os lugares de destino, dando-lhes bom tratamento durante a viagem, com vista a sentirem o menos incômodo possível.

“Chegados ao destino, para cada família seria designada uma casa – composta ao menos de dois cômodos – bem construída, e um lote de bom terreno com superfície de 25 a 30 hectares, medido e separado dos vizinhos.”


Há vários equívocos de interpretação da realidade brasileira. Do ponto de vista político, não entendeu o governo autoritário de Floriano Peixoto, repetindo a opinião média generalizada em torno de si. Tem admiração por Rui Barbosa, mas inclui seu amigo Olavo Bilac entre os intelectuais que, na Rua do Ouvidor, discutem trivialidades enquanto a realidade reclama uma participação maior dos artistas. Reproduz uma visão simplória que os próprios brasileiros tinham do mineiro como tacanho, provinciano e desconfiado.

Quanto aos italianos também os critica e, outra vez utilizando preconceituosamente de conceitos ideológicos preconcebidos pela classe dirigente, deplora a vinda de imigrantes do sul e luta por uma imigração de elite, preferencialmente do norte da Itália. Há de se entender que Moriconi escreve o livro para servir de orientação para os que trabalham com a emigração, o povo italiano em geral, e, em particular, àqueles que pensam em imigrar para a nova terra.

O resultado final é positivo porque Moriconi não descrê do processo migratório, apenas quer corrigir imperfeições ou a implantação de políticas de estado levadas a cabo com responsabilidade. Alimenta, principalmente, criar um polo de consumo de produtos italianos na América do Sul. Vê o potencial no fato de que, enviando italianos melhor preparados, estes estarão aptos a consumir a produção industrial ou artesanal italiana. Dá como exemplo a colonização alemã, que conseguiu implantar um sistema de importação de produtos alemães com sucesso.

Vendo-se Moriconi como um propagandista da Itália, um observador subjetivo da realidade brasileira (o seu testemunho de maneira alguma pode ser desprezado e serve mesmo para estudos sobre a imigração italiana no Brasil), um visionário que deseja que seu país tenha um mercado consumidor no Brasil, o livro O país dos macacos torna-se um volume de riqueza abundante, ainda que vários estudos acadêmicos somente o vejam pelo prisma do preconceito, etnocentrismo e racismo.

Um comentário:

  1. Muitos anos atrás, vi uma entrevista do Joaquim Campelo Marques informando que 'Nel Paese de’ “Macacchi” seria editado pelo Senado...e até agora nada...

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