sábado, 18 de maio de 2019

Monteiro Lobato, capítulo Ideologia do personagem brasileiro



É comum a todo lobatiano, seja aquele que com ele conviveu ou sobre ele escreveu, relatar a personalidade pragmática sonhadora ou sonhadora pragmática do autor de Urupês. A personalidade pragmática sonhadora está em toda a ação de Lobato como empresário do livro ou fundador de companhia para encontrar petróleo no Brasil. A personalidade sonhadora pragmática está em, ao escrever, ao ingressar no mundo do sonho, Lobato não se desvincular de sua atividade pedagógica como autor empírico. Toda a sua literatura está voltada para uma atitude ética. Toda ela tem vocação didática: quer formar o indivíduo como melhor ser humano ou apontar as desgraças humanas do corpo social. Quando os adultos não lhe deram bola, virou-se para as crianças, onde pôde praticar a contento sua vocação de autor de fábulas, forma literária na qual pretensamente estão implícitas a ética e a moral.

São curiosas as passagens em que Lobato se envolve com projetos mirabolantes:

"O escritor, ao verificar uma grande lâmpada no centro do açude, quis saber para que servia. Expliquei-lhe que o proprietário tivera a idéia daquela luz forte para atrair, à noite, os insetos que, tendo as asas crestadas, caíam na água, alimentando as carpas.
Ficou Lobato entusiasmado com aquilo. Imaginou logo açudes imensos nos arredores de São Paulo. Seria uma coisa formidável: ao mesmo tempo desapareceriam os pernilongos e os peixes cresceriam de maneira econômica! Uma indústria fabulosa de carpas frescas, ou enlatadas, logo às portas de uma clientela abundante, livre do transporte!
Dona Purezinha queria lançar água fria naqueles projetos, apavorada de novos empreendimentos. Mas Lobato já se via proprietário de imensos açudes, “rei das carpas”, e acabou por dar uma risadinha, dizendo ser aquilo tudo mais uma das suas fantasias, provavelmente terminando numa história para “crianças” (Oliveira Neto, Um dia com Monteiro Lobato, Leitura, p.30).

Lobato não tinha em relação à literatura nenhuma devoção formalista nem muito menos atitude reverenciosa que o levasse a considerar o escritor ser excepcional ou a literatura vocação irrecusável, “um sacerdócio ascético e heróico”. Lobato, apesar das várias cartas escritas a Godofredo Rangel, nas quais discorre sobre a possibilidade de apresentar algo novo na literatura brasileira, via-se premido não por necessidade estética, mas por vontade de construção. Uma idéia o mobilizava, uma ação o impulsionava, apenas aquilo que o motivava profundamente no aspecto genérico e social – talvez esta a causa de seu grande sucesso, mesmo com o público adulto – o atraía para a atividade física da escritura. Lobato seria apenas panfletário exaltado, excelente polemista e jornalista, se não tivesse uma literatura especial e um estilo diferenciado. Era homem de ação, de ações muitas vezes simplórias, como o próprio homem do campo que ele conhecera na sua origem do Vale do Paraíba, os quatro anos de promotoria na cidade de Areias e mais sete ainda como proprietário rural da Fazenda São José do Buquira. Essa visão prática e imediata de Lobato não invalida o caráter de sua literatura – principalmente a infantil –, em que os vôos da imaginação estão comprometidos também com a expansão da expressão estética por excelência. Escritor de estilo vivo, pré-modernista em vários sentidos ( no tema, na linguagem, na banana que dá para a gramática, na vocação da leitura dos problemas brasileiros ), autor do nosso fabulário, Lobato, embora não o desejasse, é uma figura emblemática. Monteiro Lobato é para o Brasil, podemos arriscar, o que os irmãos Grimm representam para a Alemanha e Perrault ou La Fontaine para os franceses.

A gramática brasileira
Em carta a seu amigo Godofredo Rangel, Lobato fazia uma apologia do falar brasileiro, respondendo à crítica do amigo de que estava misturando os pronomes tu e você, tão comum no português falado no Brasil. Lobato tinha um antecessor nobre, José de Alencar, que intentou uma integração da nova gramática brasileira em sua literatura. E teve sucessor notável, Mário de Andrade, que propôs e escreveu segundo sua Gramatiquinha. Alencar estava mais preocupado com a colocação de pronomes, Lobato e Mário, com a ortografia. Lobato tinha ojeriza aos acentos, Mário com sua forma ortográfica, queria aproximar-se da expressão lingüística em sua forma oral. Este outro espírito da época que Lobato encarnou e que seria à sobeja desenvolvido pelos modernistas pertence, ao se falar de Monteiro Lobato, à sua esfera progressista. A dualidade, já apontada por outros críticos, existente em Lobato diz respeito a uma oposição nem sempre complementar ou de convivência pacífica entre progresso x conservadorismo.
A expressão linguística que Lobato procurava – ou ainda, no caso de Lobato, seria melhor dizer, que Lobato instintivamente utilizou – servia muito apropriadamente para caracterizar o personagem mais conhecido na sua literatura para adultos: o Jeca Tatu, que não poderia ser apresentado ou caracterizado numa linguagem gongórica. Essa lhaneza de Lobato não era apenas estética, era também uma estratégia estilística e política, pois Lobato sempre visava ao grande público. Não é à toa que o personagem aparece inicialmente nas páginas do jornal "O Estado de S. Paulo" para mais tarde ser incorporado em livro.
Adequação entre personagem e linguagem é fundamental na construção do personagem. Se este se dá por meio da linguagem e por meio da ação se explicita, nada mais conveniente do que esculpi-lo com sua expressão. O personagem parece exigir do autor sua linguagem. Riobaldo não poderia falar de outra maneira, já que pertence a uma classe social desvalida, vida largada e pouco instruída dos campos gerais do noroeste vaqueiro de Minas Gerais. É certo que Guimarães Rosa incluiu no repertório linguístico liberdades e aumentou seu vocabulário com neologismos, mas tudo dentro do fenômeno da linguagem sertaneja. A opção de Lobato por uma linguagem brasileira estava de acordo com seu personagem. Nesse sentido, Lobato percebeu que a expressão literária era uma combinação entre meios e fins, e o personagem não apenas simbolizava, mas também emitia significação por intermédio de sua composição geral. Emitia significação por meio da ação, emitia significação por meio do ambiente, do que vestia e comia, dos hábitos ordinários e, principalmente, emitia significação por meio da linguagem utilizada.

Urupês
Jeca Tatu nasce da observação do proprietário de terras Monteiro Lobato, que herdara do seu avô, Visconde de Tremembé, a Fazenda Buquira, na Serra da Mantiqueira. Publica em jornal o artigo “Velha praga”, no qual condena o hábito das queimadas do caboclo. O fazendeiro Lobato perdera bastante na seca de 1914, quando “o fogo lavrou durante dois meses a fio, com fúria infernal. O céu toldado, o ar espesso, o crepitar permanente das matas em chama, a fumarada invadindo a casa, os olhos a arderem...” No artigo, publicado em 12 de novembro de 1914, em "O Estado de S. Paulo", faz uma descrição tremenda e condenatória do caboclo nômade, irresponsável, ignorante. Com o artigo, Lobato inicia sua vida literária, pois o jornal solicita-lhe outro texto, desta vez publicado em 23 de dezembro de 1914 com o nome de “Urupês” (urupê, espécie de fungo). Está criado o Jeca Tatu. “Ora aí está como as coisas se arrumam, e como, por obra e graça de meia dúzia de Neros de pé-no-chão entra a correr mundo mais um livro.”
O que acontece aqui é um fato curioso: o personagem não é fruto da ficção, mas do discurso do ensaio. Enquanto em Iracema o signo ideológico estava transfigurado na estética da lenda, aqui o personagem se desnuda, é conseqüência de uma ideia, lúcida, clara, exposta de maneira descarnada. Para Lobato, a revolta era tão gritante que não necessitava do envoltório confuso e simbólico de uma ficção elaborada. Mesmo não parecendo ficção estaria Lobato criando um personagem? É claro que estava, na medida mesmo em que não se referia a uma pessoa real, mas a um personagem idealizado.
Aquele ser humano, o caboclo, que Lobato dizia substituir os heróis indígenas do passado no imaginário do público leitor, que agora batia no peito e se orgulhava de pertencer a um país de caboclos, não era apenas um ser empírico como um exemplo de raça. Lobato construía-o à maneira ficcional, à maneira lobatiana de escrever, à sua projeção mítica, à sua leitura da realidade, à sua visão de classe sobre um “agregado” rural que ele via como inimigo do progresso ( é clara aí também a simpatia pela migração estrangeira ). Em Iracema, a heroína é criada com signos positivos para representar a brasilidade; em Macunaíma, a brasilidade é desfocada; entre um e outro está o Jeca Tatu, anti-herói que não consegue burlar as convenções sociais para sobreviver. Não é como Macunaíma, um espertalhão, mas um ser anódino, construído com códigos negativos.
Jeca Tatu também estava dentro de um contexto que se estenderá até o movimento modernista, que é o ciclo de entendimento da realidade brasileira em sua totalidade. Havia um exemplo ilustre e recente do princípio do século, que era a mitificação do sertanejo feita por Euclides da Cunha. Em Os sertões, Euclides, em sua confusa e científica tentativa de entender o homem raquítico, cor de bronze, vincado por profundas rugas, envelhecido antes do tempo, entre desabafos iniciais pessimistas quanto ao futuro de um povo formado por aquela gente, passa a exaltar – a fim de contrastar o horror do genocídio praticado pelo Exército brasileiro e, conseqüentemente, pela República – o caboclo, “antes de tudo, um forte”. O sertanejo de Euclides é heróico, épico, lutador, atacado por canhões Krupp de novíssima geração, milhares de homens fardados empunhando fuzis, resistindo bravamente ao cerco cruel de uma artilharia pesada, enquanto Jeca Tatu luta desalentadoramente contra o exército de vermes que o fulmina na guerra intestina de sua vida sem perspectiva. Tanto um quanto o outro são fruto do ensaio. Em Euclides, contudo, o personagem é histórico. Está em Canudos. Em Lobato, o Jeca Tatu é uma invenção metonímica do povo rural brasileiro. Nesse ponto, o Jeca diferencia-se substancialmente do sertanejo de Euclides. O Jeca passa a ser um personagem intermediário entre a ficção e o ensaio. Existe apenas na cabeça de Monteiro Lobato, mas povoa o hinterland (como se dizia na época) brasileiro.
É Lobato mesmo, numa resenha para a Revista do Brasil, que ele dirigia, que comenta Euclides da Cunha:

"Quem havia de revelar esta consonância? Quem havia de assinalar este caminho de Damasco a nossos homens de letras? Um engenheiro que não fazia profissão de letras: Euclides da Cunha. Seu livro Os sertões estalou como uma bomba e, por motivos muito simples, teve maravilhosa influência. Euclides não é português, nem francês, nem parnasiano, nem psicologista, nem satélite de astro nenhum. É uma fortíssima personalidade que soube ver e teve o valor de contar o que viu. Abaixou-se até o solo e examinou a terra; depois examinou o homem ao natural, e passou à tragédia deste homem em relação à terra. Habituados a uma mentira convencional que a literatura vinha perpetrando, penetrou fundamente essa estranha e personalíssima maneira de encarar os homens e as coisas de seu país. E de seu livro, pleno de fulgurações de um genial impressionismo, surgiu algo novo, algo com uma diretriz fecunda que vai dar imenso brilho a nossas futuras letras.”

Se substituirmos o nome de Euclides por de Lobato, perceberemos que, eliminadas algumas expressões, todo o texto cabe para a estética do autor de Urupês. A conclusão é simples. Lobato não falava de Euclides, Lobato louvava um autor que produzira antes dele segundo sua profissão de fé. O trecho em questão não é apenas para mostrar a semelhança entre ambos, mas como os dois – Euclides e Lobato – engajavam-se na função de conhecer e reconstruir o país, o primeiro pela descrição exaustiva de solo, História e homem e, por fim a denúncia; o segundo, pela descrição de solo, Mito e homem e, por fim, a denúncia.
Os vetores aqui são simples: existe a realidade circundante, Lobato apreende-a, transforma, num processo de simbolização e metaforização, o personagem, que passa a ser uma criação pessoal. O personagem retorna ao meio social como uma representação da realidade, mas na verdade não passa de sua projeção do imaginário de uma classe social. Lembremos que ao construir o personagem de Jeca Tatu Lobato era o dono da Fazenda Buquira, desencantado com o caboclo que o servia. Lobato vai extravasar um lamento, antes que uma denúncia, em relação ao seu agregado. Mais tarde, Lobato vai pedir desculpas ao personagem, dizer que não o havia entendido, acusá-lo de maneira ingênua, o problema não estava nele, mas no que fizeram dele. O problema passa a ser mais amplo, um problema de sanitarismo, um problema de política sanitária pública, no qual o Jeca Tatu era uma vítima e não o algoz social.

Lobato e o pró-saneamento
O aparecimento do Jeca Tatu não pode estar desvinculado do contexto social da época, que reivindicava uma nova postura ante os problemas das epidemias, das pandemias e das endemias rurais. Miguel Pereira, Oswaldo Cruz, Carlos Chagas, Adolfo Lutz, Vital Brasil, entre muitos outros, denunciavam as péssimas condições sanitárias em que vivia o Brasil rural. Estava no espírito da época lutar contra as condições mínimas de higiene para a população do campo, infestada por “áscaris, ancilóstomos, tricocéfalos, anguilulas, tricomonas, amebas, tênias, himenolepsis, oxiúros, etc., uma fauna inteira, voracíssima, vivendo à tripa forra, em família ou em sociedade de duas, três e quatro espécies nos intestinos da pobre gente!”, no dizer do próprio Lobato. Ele não estava sozinho, nem era um pensador extemporâneo. Participou de campanhas, escreveu artigos em "O Estado de S. Paulo", engajou-se em comissões e comitês pró-saneamento.
Havia, desde o princípio do século, campanhas contra a febre amarela. Oswaldo Cruz criara a obrigatoriedade da vacinação antivaríola, o Instituto de Manguinhos albergará um grupo de cientistas preocupados com a erradicação de doenças crônicas, como chagas, leishmaniose, malária e outras mazelas tropicais. Já não se discutia o homem brasileiro em abstrato, mas em sua conformação física. O homem das cidades, da faixa litorânea, que começava a urbanizar-se, diferenciava-se do homem do campo, internado no país, vitimado pela subnutrição, trazendo dentro de si a miséria que o consumia. O mais triste era perceber, na cidade, um quê de campo no homem urbano, também vítima das doenças pretensamente do “rurais”. O primeiro posto de saúde pública será inaugurado por Washington Luís nada mais nada menos do que na capital do país, o Rio de Janeiro, em 1916, no subúrbio de Vigário Geral.
Belisário Pena, incansável médico e propagandista do pró-saneamento, resumira as três necessidades do Brasil: “Botina, Necatorina e latrina”. Era não apenas uma reivindicação justa, mas também um modo muito peculiar de pensar os problemas sociais: reduzir às necessidades básicas e elementares, problemas que são também e principalmente estruturais. Lima Barreto, outro que lutava pelas mesmas idéias, tinha, contudo, consciência da amplitude do problema e sabia que botina, creolina e latrina não resolveriam o problema brasileiro.

"Por esse lado [o da demonstração das endemias que assolam o país] julgo que ele [o dr. Pena] e os seus auxiliares não falsificam o estado de saúde das nossas populações campestres. Têm toda a razão. O que não concordo com eles é com o remédio que oferecem. Pelo que leio em seus trabalhos, pelo que a minha experiência pessoal pode me ensinar, parece-me que mais há nisso que uma questão de higiene domiciliar e de regime alimentar [...]. A cabana de sapê tem origem muito profundamente no nosso tipo de propriedade agrícola – a fazenda. Nascida sob o influxo do regime de trabalho escravo, vai-se eternizando sem se modificar nas suas linhas gerais. Mesmo em terras ultimamente desbravadas e servidas por estradas de ferro, como nessa zona do Noroeste, que Monteiro Lobato deve conhecer melhor do que eu, a fazenda é a forma com que surge a propriedade territorial no Brasil [...]. O interesse do seu proprietário é tê-la intacta para não desvalorizar as suas terras. [...] Para isso, todos aqueles agregados ou coisa que o valha, que são admitidos a habitar no latifúndio, têm uma posse precária das terras que usufruem; e não sei se está nas leis, mas nos costumes está, não podem construir casa de telha, para não adquirirem nenhum direito de locação mais estável.
Onde está o remédio, Monteiro Lobato? Creio que procurar meios e modos de fazer desaparecer a fazenda.
Não acha? Pelo que li no “Problema vital”, há câmaras municipais paulistas que obrigam os fazendeiros a construir casas de telhas para os seus colonos e agregados. Será bom? Examinemos. Os proprietários de latifúndios, tendo mais despesas com os seus miseráveis trabalhadores, esfolarão mais os seus clientes, tirando-lhes ainda mais dos seus míseros salários do que tiravam antigamente. Onde tal coisa irá repercutir? Na alimentação, no vestuário. Estamos, portanto, na mesma.
Em suma, para não me alongar. O problema, enquanto não se possa desprezar a parte médica propriamente dita, é de natureza econômica e social. Precisamos combater o regime capitalista na agricultura, o latifúndio, dividir a propriedade agrícola, dar a propriedade da terra aos que efetivamente cavam a terra e plantam e não ao doutor vagabundo e parasita que vive na “casa-grande” ou no Rio e em São Paulo. Já é tempo de fazermos isto e isto que eu chamaria o “problema vital” (Lima Barreto, “Problema vital”, Bagatelas, p. 78-79 ).

(fim do trecho  do 4º capítulo do livro A ideologia do personagem brasileiro, Ed. UnB, 2007)
(...)

imagem retirada da internet

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