sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

Entrevista, Correio Braziliense

Carlos Marcelo

Correio Braziliense,
Manual de Tortura


José Varella, Correio Braziliense



1. “Idéias não nascem assim, de repente”. É possível exercitar a imaginação como se houvesse uma barra de exercícios?

R – Não. A imaginação é traiçoeira e nos prega peças. Não adianta você escrever todos os dias que não conseguirá escrever boa ficção. Embora o romance necessite de disciplina, não significa que tudo o que está escrito é de boa qualidade. Agora uma coisa me parece certa: se palavra puxa palavra, uma cena ou uma idéia pode puxar o fio do novelo de uma história. Ou ainda: muitas vezes fazemos um esforço danado para finalizar um conto e um dia, de repente, dirigindo o carro, caminhando, tomando café, o final se oferece como a máquina do mundo no poema de Camões e de Drummond.



2. “O trabalho rotineiro era invenção não do Diabo, mas de um Deus patrão”. A rotina é torturante ou pode ser inspirada? E no que difere a rotina do escritor?

R – Inicialmente eu diria que a rotina é esterilizante. Ela descarna o ato criativo, mecaniza ações, congela o pensamento. Mas, creio que, para mim, a rotina para escrever é fundamental. Não posso escrever continuadamente numa desordem como nas viagens ou um cotidiano confuso. A poesia pode se dar ao luxo de uma produção desorganizada, mas a prosa necessita de disciplina. Estou me referindo ao ato em si de escrever.

3. Quais são suas obsessões como escritor? Elas podem ser medidas? Como essas obsessões estão espelhadas em “Manual de tortura”?

R – Todo escritor tem sua obsessão. Na verdade, já foi dito, o escritor escreve quase sempre o mesmo livro ou busca o livro ideal. E todos eles têm seus temas prediletos que no fundo representam as obsessões. Bem fez Proust que escreveu sete volumes, mas um só livro. O trabalho da crítica, entre outros, é descobrir essas recorrências como o espelho, o labirinto, o tempo, o tigre, etc em Borges. O que posso dizer de modo inconcluso é que gosto dos personagens à margem (não propriamente marginais) da sociedade, deslocados, em situações opressivas criadas muitas vezes por sua própria imaginação.

4. Por que um título tão forte, capaz até de causar interpretações perigosas se lido ao pé da letra? Está disposto a correr o risco?

R – “Manual de tortura” é um livro sobre as torturas cotidianas. Inclusive aquelas que não classificamos como tortura: o amor, o trabalho, a rotina, a busca da fama, personagens perseguidos pelo meio circundante, o medo da morte e o medo da vida, o homem, como no quadro de Magritte que, em vez de ver seu rosto, vê sua própria nuca, o moribundo que grava vozes de mortos para lhe fazer companhia.

5. “Se ninguém olha para o seu trabalho, tudo vai por água abaixo”. A defasagem entre o reconhecimento efetivamente obtido e o intimamente esperado pode afetar a criatividade?

R – Acredito que sim. Escrever e não ter reconhecimento, não ser lido por um grande público faz o autor correr dois riscos. O primeiro é não ter a resposta de sua contemporaneidade sobre seu trabalho. O segundo é enveredar por um caminho solipsista que pode levar o autor a construir uma obra que não é do seu tempo, em sentido positivo e também negativo. Talvez o único lucro seja este último desafio: escrever para um tempo mais à frente. O que, contudo, não é gratificante, pois escrever para a posteridade é bom só em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, com seu autor defunto ou seu defunto autor.

6. Chefes, burocracia, mesas, filas, promoções funcionais. Uma repartição, como tantas que há em Brasília, consegue impulsionar as suas idéias? Ou não há nada mais antiliterário do que uma cidade oficial?

R – Brasília é uma cidade profícua para a ficção. Aliás, tudo serve para a ficção. O escritor é um pouco recoletor de miudezas, de coisas desprezadas, um catador de destroços. O escritor, assim, se torna, para usar uma palavra da moda, um reciclador. Dyonélio Machado, em “Os ratos”, usou apenas uma enorme ação, a de um sujeito que passa o dia atrás de um empréstimo que todos lhe negam. Ora, essa trama é mínima, mas Dyonélio soube reciclar um fato ordinário que numa conversa passa despercebida como, por exemplo, “veja só Fulano, veio me pedir dinheiro emprestado”. Eu diria que desse “lixo”, comum, vulgar, um nada, Dyonélio criou um grande romance. Tudo serve para a ficção.

7. Do boxeador que ouve música erudita ao servidor público, como funciona o seu processo de metamorfose para cada narrador? É difícil encontrar o tom adequado?

R – Ultimamente, com o romance “O viúvo”, por exemplo, venho tendo a mesma dicção. E não quero perdê-la. Então sei que o que escrevo terá o mesmo tom. Como funciona meu processo de transcodificação da realidade para a ficção eu não sei bem. Sei que, fisicamente, volto neuroticamente ao texto para reescrevê-lo. Sempre insatisfeito. E sempre digo que as histórias já estão escritas dentro de mim, no inconsciente. O problema é mergulhar nesse mar profundo, escuro, sem tubo de oxigênio.

8. Suas histórias curtas partem de observações, vivências ou de ambos? Toma notas durante esse processo? Qual a fase mais difícil?

R – Não sei. Não tenho método. Às vezes, anoto durante bom tempo o que pode me servir e mais tarde não uso nada. O que sei é que não separo o escritor e o cidadão não escritor. Estou vinte quatro horas em processo de criação, ou seja, qualquer guimba de cigarro pode virar uma história. Muitas vezes acreditei que tinha a história e na hora de escrevê-la não tinha história nenhuma. A história vai se fazendo ao escrever e pode tomar o rumo que ela desejar. Lamento é nunca ter aproveitado nada dos meus sonhos.

9. Cinco romances, uma novela, um ensaio e quatro livros de poesia. Agora, contos. Em que formato você se sente mais à vontade, mais inteiriço? O que mais o entusiasmou nessa nova experiência?

R – Em todas essas expressões literárias me sinto confortável. Agora há certo desconforto ao desconhecer, no caso da prosa, se farei um romance ou um conto. Isso porque uma história pode não render e virar um conto. Em outra oportunidade, pensei que ia escrever um conto, como foi o caso do romance “O morto solidário”, e o conto não terminava e apareciam novos personagens, até que me rendi ao romance. No caso da poesia, relutei muito em publicar os poemas, embora os escrevia, porque as pessoas gostam de rotular, fulano é poeta, sicrano é prosador. Mas eu tinha que parir os poemas, publicá-los e deixar que fossem buscar alimento sem a proteção do pai. Esses contos são apenas uma parte de outros contos que ainda estão informes, inacabados ou que penso retomar a história sem aproveitar nenhuma palavra do anterior. Escrever conto é muito bom, porque se o conto é uma porcaria você gastou pouca energia e tempo com ele, enquanto que o romance pode levar de seis meses a dois anos...

10. A morte ronda, ou habita, praticamente todos os contos do livro. Já tinha sido assim no livro anterior, “O viúvo”. Por que essa onipresença? Como você tem lidado com o tema? Como o escritor pode driblar, ou ao menos ressignificar, a morte?

R – Talvez a morte seja minha grande obsessão. E aí eu teria que voltar à pergunta sobre obsessões. Eu comecei a escrever, creio, para, ingenuamente, vencer a morte. Não me tornar imortal. Mas imaginar que se alguém, depois da minha morte, um parente, um amigo, lesse o que escrevi eu permaneceria vivo. Hoje não temo a morte. Mas, na juventude, a morte era uma grande incógnita e um contínuo desespero. Eu não podia aceitar a belíssima frase de Shakespeare de que “a vida é uma história contada por um tolo, cheia de som e fúria, significando nada”. O nada dessa frase tinha o poder de fogo de um pelotão de fuzilamento. No que escrevo, contudo, a morte não é o principal tema nem o elemento fundamental, embora ela dispare diversos comportamentos dos personagens. Nem posso dizer que a morte seja um dejeto, um detrito, algo pequeno. A morte, no que escrevo, é um pano de fundo, uma permanente lembrança da vacuidade das ações e sua presença é constante mesmo onde ela aparentemente não surge.

11. Escrever é mais árduo do que viver? No seu caso, é possível ser feliz sem escrever?

R – A literatura não pode ser vista como terapia para neurose. Mas a verdade é que expulsamos demônios que nos atormentam. E que é preciso abrir a comporta, se não a represa pode ser demolida ou vazar. Escrever e viver se confundem para mim. Há situações que penso que sou personagem da história e há narrativas minhas que penso que estou relatando a vida do personagem quando, transfigurado, estou me confessando. Mas literatura não é confissão, no sentido de se historiar casos domésticos. Nem as experiências do narrador são as experiências do autor. Viver não é perigoso, viver é trágico. E a tragédia maior não está propriamente na violência externa, da qual eu também trato, mas da violência interior. Não, eu não poderia ser feliz sem escrever como eu não poderia ser feliz respirando como um asmático em eterna crise.

12. Em um mundo congestionado de informação, a literatura se tornou acessória, simplesmente obsoleta ou ainda mais vital?

R- A literatura é o refúgio do humano. Pode desaparecer o objeto livro, mas não desaparecerá a necessidade de fabulação, nem a necessidade de ouvir ou ler fabulação. Logo, a literatura é uma necessidade social, um nicho de humanidade contra a mecanização e a massificação.

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