sexta-feira, 1 de abril de 2016

Sapatos Brancos, conto de Jádson Barros Neves






"Não cruzarás o mesmo rio duas vezes, porque outras são as águas que correm nele."
(Heráclito de Éfeso)



Depois do temporal – antes havia os cotovelos no parapeito da janela aberta para a chuva na roseira vermelha –, após o silêncio na cozinha e somente com a cantoria da mãe no quarto, o menino desceu com os barquinhos de papel. A enxurrada sangrava do morro, no começo da rua, tornava-se rio no cordão da calçada, enquanto o menino, correndo aos pulos, acompanhava os barquinhos que desciam e se desmanchavam. Da chuva, ou talvez da tarde, as tanajuras e os bem-te-vis haviam nascido. O menino passou a correr atrás das tanajuras e, quando se cansou, esteve contemplando os bem-te-vis até as luzes se acenderem nas casas. Pensou no bodoque de pau-d’arco. Pensou nos índios de seus gibis: Touro Sentado, Cabelos Velozes, Vai Com o Vento, Condor Condor.

O grito da mãe chamando ecoou no silêncio da rua.

— Pedriiinho!

Correu para a casa e, antes que a mãe o visse, ele já estava no quintal, banhando-se com a água do balde. Ali também havia tanajuras. Era a época delas e das chuvas. Haviam terminado as aulas. Começavam a aparecer as primeiras mangas no quintal, os primeiros periquitos. Então já podia usar o estilingue, e logo veriam muitos pássaros verdinhos, de asa quebrada e bicadas tortas, e doídas.

Tiritando de frio, Pedrinho ergueu os braços para que a mãe o enxugasse. Fechou os olhos, enquanto ela lhe secava a cabeça e penteava os cabelos.

— Hoje você vai dormir no quartinho — ela disse.

Logo anoiteceu. A mulher saiu para o quintal, entrou no quartinho, armou a rede, pôs lençóis; em seguida, voltou à casa, pegou os tomates e um pouco de sal e deu para o menino, tudo dentro de uma bacia.

— Agora vá — disse, abaixando-se para beijá-lo.

O menino parou entre a casa e o cômodo escuro. A mulher o empurrou suavemente pelas costas, até ele entrar. Depois, trancou a porta por fora. Pelo buraco da fechadura, o menino viu a luz na casa.

A mãe iria demorar a dormir. E o menino outra vez escutaria até altas horas da noite conversas na casinha; as risadas da mãe e o vozeirão do homem. Quando acordasse, no dia seguinte, Pedrinho encontraria a mãe cantando, enquanto arrumava a casa.

O menino tentava resistir aos tomates, mas, de noite, cortava um e ia triscando no sal e terminava comendo todos. De madrugada, acordava sedento. Em certo instante, depois que tudo silenciava, ele não conseguia mais dormir e então seria de manhã.

E foi assim que aconteceu. Mal a mãe o fechou no quarto, Pedrinho deitou-se na rede, mas logo se levantou atraído pelo desejo dos tomates. Comeu um, e, logo depois, outro.

Sentia vontade de ver o homem. Muitas vezes, ouvia-o caminhando no quintal. Mas passavam-se dias, semanas, sem que ele aparecesse. Então, a mãe ficava triste, e sua cantoria de sabiá nostálgica perdia-se nas tardes da casa, enquanto Pedrinho corria com o cavalinho-de-pau, atrás de bisontes imaginários, inventando nomes para guerreiros invisíveis, seus preferidos os sioux e os apaches.

Um dia qualquer, contudo, o carteiro aparecia com um telegrama e então a mãe voltava a ser alegre. Até brincava com o menino na casa de quintal imenso que se abria para os quintais vizinhos, um mundo inteiro por onde correr e brincar, numa rua de casas emparelhadas. Havia densas mangueiras e um laranjal e, nos meses de chuva, o terreiro ficava escorregadio e adquiria uma coloração verde por causa do lodo. Ali, todas as ruas acabavam no rio. De noite, da calçada da rua, podiam-se ver as luzes das embarcações que passavam.

As vozes felizes dos dois felizes. Então, os discos de vinil seriam buscados no baú e, ao som de antigos boleros, o homem e a mulher dançariam na sala. Mas o menino não sabia disso. Deitado na rede, ele tentava controlar a sede, tentava dormir.

A mãe retirara a lâmpada do quarto, para que o menino não a acendesse. O homem não demorava mais do que uma noite. No dia seguinte, Pedrinho voltava ao quintal, às brincadeiras de índios, aos gibis de faroeste, ao mundo enorme de adultos que transitavam pela casa, comprando os bordados que sua mãe tecia no bastidor. O quarto dos fundos então ficava trancado, durante muitos dias, às vezes meses. Pedrinho se esquecia dele. Esquecido de tudo, ele era feliz na sua infância. Era assim. Foi assim durante muito tempo.

A última visita do homem aconteceu numa segunda quinzena de dezembro e, como todas as outras, antecedida pela vinda do carteiro. Era uma tarde nublada em que o céu, de tão baixo, parecia encostar-se às casas. O carteiro ficou algum tempo parado, bebendo um copo d’água, e Pedrinho o acompanhou com o olhar, sem deixar as figurinhas no chão. A mãe sentou-se na cadeira de fibras vermelhas e abriu o telegrama tarde demais para ela ter tempo de arrumar a casa e espalhar sua felicidade com a vassoura no piso de cimento. Depois, guardar os brinquedos. A casa então ficaria em silêncio.

— Hoje você vai dormir no quartinho — disse-lhe a mãe.

Jantaram calados e, logo depois do jantar, carregando a bacia com os tomates, a faquinha e a xícara com sal, o menino saiu. A mulher armou a rede e trancou-o no quarto. Antes, da porta, a recomendação: — Não faça barulho. De manhãzinha, eu venho.

Um beijo na testa, e o menino a seguiu com o olhar pela fechadura da porta.

Pelo buraco, o menino via a porta da cozinha iluminada, o caminho de pedras que ladeava a pequena horta do quintal. A noite veio junto com uma grande tempestade. Muitos relâmpagos e trovões e depois a chuva fustigando o telhado e o vento zumbindo. Pedrinho dormiu e acordou tarde da noite, no escuro, bem depois que a chuva passou. Escutou vozes no quintal e então correu para a fechadura. Viu a porta da cozinha aberta e o retângulo da luz invadindo o canteiro de alfaces. A mulher deu uma gargalhada. Um pouco depois, o menino distinguiu um par de pernas abertas, que terminava em dois sapatos brancos. Ele viu o jato de urina; ouviu a voz rouca do homem falando para a alegria dentro da cozinha e viu novamente as pernas e os sapatos se movendo. Então a porta foi fechada. Durante algum tempo, ele ainda ouviu vozes na casa e depois tudo silenciou.

A manhã custou a chegar, e com ela veio o silêncio dos galos, o reinado dos pássaros, e o menino ouviu o homem se despedindo e, logo depois, os passos da mãe no caminho empedrado. Ela emoldurou-se na porta. Tinha o cabelo penteado e exibia um vasto sorriso. Agachou-se e beijou Pedrinho, pronunciando palavras de mel, mas o menino só queria água. Sua raiva afogou-se na caneca, e ele logo voltou a ser criança novamente.

Passaram-se muitos dias. Numa tarde quente, ele brincava no alpendre quando viu, empurrando a cancela, um homem alto, moreno, de cabelos pretos, bigodes e um sorriso de Mandrake. A mãe não estava em casa. O homem fez algumas perguntas sobre ela, entrou e voltou ao alpendre segurando um copo d’água.

Quando, da esquina, a mulher viu o homem, atrasou seus passos. O homem elaborou um sorriso contrafeito e chamou a mulher para dentro da casa.

Nessa noite, o menino não ficou trancado. Jantou e adormeceu ouvindo de sua rede até tarde a conversa dos dois na sala. De manhã cedo, o homem partiu, mas antes brincou com o menino, beijou a mulher e sumiu na rua. Dias depois, chegou um novo telegrama. Nessa tarde, a mulher esteve arrumando, dobrando roupas e lençóis. Para o menino que a observava ela declarou:

— Nós vamos embora daqui.

Nos dias seguintes, ela esteve empacotando objetos e pediu que o menino guardasse seus brinquedos numa caixa de sapatos. Jantaram mais cedo que de costume. A chuva também chegou cedo. Cansada de ouvir a água no telhado, a mulher chamou o menino para dormir com ela. Em certo momento da noite, ela virou-se para o menino e, passando-lhe a mão nos cabelos, disse-lhe:

— Nós vamos embora daqui porque aquele homem que sempre vem nos visitar é seu pai.

Agora, muito tempo depois, após voltar do trabalho, Pedrinho sai à porta da casa e permanece observando o horizonte esmeralda, que se abre do outro lado do cais. Fica contemplando o rio, enquanto ouve a alegria das crianças que brincam na rua. Mais tarde, lentamente, chegam as primeiras sombras, estendendo-se até os cantos mais afastados, e a cidade termina por banhar-se de azul e de um violeta intenso. As luzes acendem-se, e as pessoas que permanecem na rua começam a entrar em suas casas. Tudo então se torna mais tranquilo. Nas ruas, as crianças continuam brincando indiferentes. A sua mulher sorri mais uma vez, ao vê-lo assim, e avisa que já vai tarde o jantar, mas Pedrinho permanece ali, enquanto suavemente a noite vem. Continua muito tempo no mesmo lugar, angustiado por uma vaga melancolia, adivinhando ao longe as luzes dos barcos. Mais tarde, responde à mulher que o espere um momento mais, porém continua sem se mover na escuridão, sentindo assim como se sua alma pudesse de repente se desgarrar dele e esconder-se em algum lugar.





Jádson Barros Neves, entre outros concursos de que participou, foi o vencedor do 2º lugar do Concurso Internacional de Contos Guimarães Rosa, promovido pela Radio France Internationale, Paris, em 2000 (Prêmio Maison de l’Amérique Latine); vencedor do prêmio Cidade de Fortaleza/2003; vencedor do prêmio Felippe D’Oliveira, em 2001; vencedor do Prêmio Cidade de Boa Esperança/2001, vencedor do prêmio Domingos Olímpio/2004 e do Concurso de Contos da Região Norte/2004; em 2008, vencedor do Prêmio Cidade de Belo Horizonte, na categoria livro de contos e, em 2011, vencedor do Concurso de Contos Ignacio de Loyola Brandão, tendo outros dois contos classificados como menção honrosa. Espera publicar seu livro de contos ainda nos primeiros meses do segundo semestre de 2012.

quinta-feira, 31 de março de 2016

CHOICE, poema Alberto Bresciani




Um corpo arrastado
pelo rio
Ainda vivo
esbarrando nas pedras
atravessando a trama
de raízes das margens
Ainda vivo
como se tivesse
guelras
Toca o fundo
Corta os pés o sexo
os joelhos os lábios
Aceita quase o fim
Ouve o chamado
pra voltar
– “entra
tá na hora
já vêm te buscar” –
Vê outra vez
os livros no chão
descrença
brinquedos quebrados
o preto e o branco
Cruz
em cada perda
Então sobe
engole ar arranca ar
Aceita exércitos
invisíveis
palavras de gente distante
curativos nas datas
velhas
Sobe sai da água
tem asas tem forma
tem chave uma porta
E pode
abrir
 

quarta-feira, 30 de março de 2016

Poema do pai de Eduardo Campos para o filho





                  




                                        O Filho





                                          A Eduardo e Antônio Campos
Que seja assim:
alegre sem desconhecer
a tristeza, capaz
de uma ilusão.
Forte sem apedrejar
derrotas, rebelde,
sem destruir a mansidão.
Servo apenas do ideal e sonho,
e rei de sua vontade.
Amando as pessoas sem
deixar que nenhum medo
o faça desconhecer a liberdade.



26 de junho de 1968
(do livro Lavrador do Tempo, 1998, pág. 27, de Maximiano Campos - 1941-1998)