sexta-feira, 8 de abril de 2016

Manoel de Barros

 

 

 

 

VII

Descobri aos 13 anos que o que me dava prazer nas
            leituras não era a beleza das frases, mas a doença
            delas.

Comuniquei ao Padre Ezequiel, um meu Preceptor,
            esse gosto esquisito.
Eu pensava que fosse um sujeito escaleno.
– Gostar de fazer defeitos nas frases é muito
            saudável, o Padre me disse.
Ele fez um limpamento em meus receios.
O Padre falou ainda: Manoel, isso não é doença,
            Pode muito que você carregue para o resto da
            vida um certo gosto por nadas...
E se riu.
Você não é bugre? – ele continuou.
Que sim, eu respondi.
Veja que bugre só pega por desvios, não anda em
            estradas –
Pois é nos desvios que encontra as melhores
            surpresas e os ariticuns maduros.
Há que apenas saber errar bem o seu idioma.
Esse Padre Ezequiel foi o meu primeiro professor de
            agramática.
                                   ( Manoel de Barros )

domingo, 3 de abril de 2016

Antonio Carlos Secchin, por Edmílson Caminha


SAUDAÇÃO A ANTONIO CARLOS SECCHIN,

NA ACADEMIA DE LETRAS DO BRASIL

 

Começo por agradecer a Fabio de Sousa Coutinho, escritor ilustre e amigo do coração, o privilégio e a honra de saudar, em nome dos que já pertencemos à Academia de Letras do Brasil, o professor, poeta, ensaísta, crítico literário e bibliófilo Antonio Carlos Secchin, que nesta noite se empossa como sucessor do poeta Lêdo Ivo na Cadeira n° XXIII, cujo patrono é o romancista José Lins do Rego. Assento que, por acaso feliz, continua em mão de titular da Academia Brasileira de Letras, pois Lêdo e Secchin por oito anos conviveram sob o teto da Casa de Machado de Assis.

Nascido na cidade do Rio de Janeiro, Antonio viveu até os seis anos em Cachoeiro de Itapemirim, ou Cachoeiro de ItapeSecchin, / esta estrada tropical da Itália / que desemboca em você e em mim, como divertidamente escreve no poema “Reunião”. Cachoeiro em que, lembre-se, nasceu Rubem Braga, cronista maior da literatura brasileira, do que se pode concluir tenha algum misterioso elemento propício à vocação literária. Talvez a água do rio em que se banham os pequenos, alheios aos fados que os destinam à sedução da prosa e ao encanto da poesia.

De volta ao Rio de Janeiro ‒ onde se tornará definitivamente um Homo copacabanensis, como gosta de considerar-se ‒,  Antonio Carlos Secchin ingressa, aos 17 anos, na Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Seis anos depois, ensinará literatura e cultura brasileiras na Universidade de Bordeaux, na França. Aos 27 anos, torna-se mestre em literatura brasileira, e aos 30, recebe o título de doutor em letras, com teses brilhantes sobre a poesia de João Cabral de Melo Neto, obra em que virá a ser especialista consagrado. Em 1993 é aprovado por unanimidade, com nota máxima, em concurso público para professor titular de literatura brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro, o mais jovem catedrático da disciplina entre os colegas da instituição.

Expoente do magistério universitário brasileiro, ministrou cursos em Roma, Rennes, Mérida, Nápoles e Paris. Proferiu cerca de 400 palestras, no Brasil e em países como Argentina, Cuba, Espanha, Estados Unidos, França, Israel, Itália, México, Portugal e Venezuela. Orientou 24 dissertações de mestrado, 13 teses de doutorado e três pesquisas de pós-doutorado. Ministrou 48 cursos e participou de 177 bancas de pós-graduação, no Brasil e no exterior.

Nas poucas horas livres de que dispunha, Secchin escreveu (e continua a criar) uma obra que se recomenda pela riqueza da substância e pelo requinte da forma. No âmbito da crítica e do ensaio, avultam João Cabral: a poesia do menos (1987); Poesia e desordem (1996); Cruz e Sousa, o desterro do corpo (1998); Um mar à margem: o motivo marinho na poesia brasileira do Romantismo (2000); Escritos sobre poesia & alguma ficção (2003); Memórias de um leitor de poesia (2004); João Cabral de Melo Neto: uma fala só lâmina (2014) e Papéis de poesia [Drummond & mais] (2014).

Poeta luminoso, escreveu A ilha (1971); Ária de estação (1973); Elementos (1983); Diga-se de passagem (1988); Poema para 2002 (nesse mesmo ano) e Todos os ventos (também em 2002), com tradução publicada no México em 2004, e Eus & outras (2013). Some-se, a tantos e tão celebrados títulos, o original, interessante e útil Guia dos sebos, lançado em 2001 e já na 5ª edição.      

No prefácio com que apresenta os estudos de Poesia e desordem, o filólogo Antônio Houaiss louva o xará Secchin, entre outras razões, porque “em tudo o que faz há um lastro precioso de elegâncias (na linguagem, nas imagens, no encaminhamento das ideias, no respeito ao leitor, no pudor para com seus criticados) que fazem dele, na fauna em que se inseriu, um exemplar exemplar.” E adiante: “(...) tudo nele é escrito com lastro, com empenho, com seriedade ‒ amena, embora: seu senhorio temático, eixado num esplêndido domínio verbal, faz de tudo o que faz algo que é uma lição e um prazer.”

Sobre a poesia de Todos os ventos, nota Eduardo Portella: “Em Antonio Carlos Secchin nada é irrelevante.” Curioso que a afirmação de Houaiss, relativa à prosa, vale igualmente para a poética secchiniana, assim como a de Portella, quanto aos poemas, é também verdadeira para a produção do ensaísta. Vê-se, portanto, a excelência do autor nas duas áreas, pelo apuro estilístico com que dá grandeza às matérias sobre que trabalha.

Em 1995, elege-se membro titular do PEN Clube do Brasil, e nove anos depois, é empossado na Cadeira n° 19 da Academia Brasileira de Letras, o mais jovem de todos que então a compunham. Juventude que vai além de si mesma, e inicia uma nova era na história da Casa, pelo interesse, pelo dinamismo e pela pertinácia do novo acadêmico, primeiro secretário da diretoria em 2014 e 2015. A ele se deve a excelente coleção “Essencial”, com pequenos mas substanciosos perfis biográficos de nomes que dignificaram as cadeiras de que foram ocupantes. Sou-lhe particularmente grato pela publicação, em 2010, do meu livrinho Rachel de Queiroz, a senhora do Não Me Deixes, comemorativo do centenário do nascimento de minha conterrânea ilustre.     

No discurso com que se empossou, Antonio Carlos Secchin reitera a lucidez e a equidade que lhe orientam a crítica, ao reconhecer a importância de um dos antecessores na cadeira que passa a ocupar, o escritor cearense, conterrâneo de quem me orgulho, Gustavo Barroso. “Quando aderiu ao integralismo, em sua vertente mais áspera, Barroso já se notabilizara por uma série de realizações como homem público e como escritor” ‒ afirma com honestidade e isenção. Diferentemente de tantos (incluídos muitos cearenses) que, dominados pelo preconceito intelectual, pela paixão ideológica e pela intolerância política, negam-se a ler o brilhante criador, o estilista admirável que aos 24 anos escreveu uma obra-prima, Terra de sol, que está para as letras cearenses como Os sertões para a literatura brasileira.

A propósito das fronteiras que há entre países e entre áreas do conhecimento, como a sociologia e a literatura, o orador diz muito mais do que pode parecer ao ouvinte menos arguto, sobre as profundezas misteriosas em que jaz a condição humana: “Não interpreto os limites como região de plácido descompromisso entre o lá e o cá, mas como um tenso território em cujas bordas vivenciamos o risco e o fascínio do duplo. Dissolvida a confortável ilusão da unidade, aprendemos a confrontar-nos com o território do que desconhecemos. Percorrer o intervalo não é abrigar-se entre dois espaços, é expor-se a ambos. É aceitar o assédio e o aceno de tudo aquilo que, em nós ou fora de nós, se recusa à apropriação apaziguadora da identidade.”

Diferentemente do protocolo que se observa na Academia Brasileira de Letras, nosso homenageado foi recebido, com um primoroso discurso, pelo à época presidente da instituição, Ivan Junqueira, grande poeta e crítico de respeito, como o colega e amigo a quem saudava. Não lhe custou, portanto, analisar com agudeza a obra do novo acadêmico, em que o ensaísta, felizmente, não sufoca nem castra o poeta, e na qual a “amorosa obsessão” por João Cabral de Melo Neto ‒ no dizer de Antônio Houaiss ‒ não o reduz a simples imitador do pernambucano. Segundo Junqueira, se Cabral constrói a “poesia do menos” ‒ expressão secchiniana para nomear o famoso livro que a disseca ‒, o próprio Secchin compõe a “poesia do pouco”, no sentido de que nela tudo é essência, nada sobra, não há o que cortar, feita que é por um poeta para poetas, pela superior qualidade do que cria.

Chama-nos Ivan Junqueira a atenção para o humor nos poemas de Secchin, alcançado, às vezes, pela cética ironia com que testemunha o espetáculo dos homens e das coisas. Em “Sagitário”, por exemplo:

 

 

Evite excessos na quarta-feira,

modere a voz, a gula, a ira.

Saturno conjugado a Vênus

abre portas de entrada

e armadilhas de saída.

Evite apostar em si, mas, se quiser,

jogue a ficha em número

próximo do zero. Evite acordar

o incêndio implícito de cada fósforo.

E quando nada mais tiver a evitar

evite todos os horóscopos.

 

Em outros versos, a fonte humorística são as imagens incomuns, as rimas surpreendentes, como em “Concorde com Freud”, de que transcrevemos quatro estrofes:

 

Matou o analista e foi a Miami.

Na fuga, levou a reboque

a série inglesa de Hitchcock.

 

Damas ocultas em jardim sem medo

se ofereciam em zoom

para levá-lo a lugar nenhum.

 

Comparado a seu rosto, dir-se-ia negro

qualquer giz; tal qual surge, intenso,

um osso, no raio-x.

(...)

A tudo respondeu solene e quieto

com minúcias tediosas

de um hemograma completo.

 

Este, o notável escritor que a Academia de Letras do Brasil tem a honra de empossar. Saúdo-o exatamente como o poeta Ivan Junqueira o recebeu na Academia Brasileira de Letras, com a tradição protocolar dos verbos na segunda pessoa do plural, de que tanto gosto:

 

Sr. Antonio Carlos Secchin ‒ o poeta, o ensaísta, o crítico literário, o bibliófilo, o mestre exemplar de nossa literatura ‒ sede bem-vindo ao nosso convívio, que, como sabeis, se estenderá para o resto dos tempos. Per omnia sæcula seculorum, diz a surrada, e talvez por isso mesmo verdadeira, expressão latina. Esta é a Casa que o tempo escolheu para erguer a sua morada, que é também a do ser que se resolve em palavras. É nela que havereis de conquistar aquele tempo que, como diz o poeta, somente através do tempo será conquistado. A isto chamamos memória: a dos que já se foram e ainda doem em nós como eternas cicatrizes, e a dos que, como vós, lograram transpor a soleira da imortalidade. Sede bem-vindo!

 

Muito obrigado.