sexta-feira, 22 de dezembro de 2017

East Coker, T. S. Eliot



EAST COKER
                                  (trecho inicial da parte I)

Em meu princípio está meu fim. Umas após as outras
As casas se levantam e tombam, desmoronam, são
                                        [ ampliadas,
Removidas, destruídas, restauradas, ou em seu lugar
Irrompe um campo aberto, uma usina, um atalho.
Velhas pedras para novas construções, velhos lenhos
                                        [ para novas chamas,
Velhas chamas em cinzas convertidas, e cinzas sobre
                                        [ a terra semeadas,
Terra agora feita carne, pele e fezes,
Ossos de homens e bestas, trigais e folhas.
As casas vivem e morrem: há um tempo para
                                        [ construir
E um tempo para viver e conceber
E um tempo para o vento estilhaçar as trêmulas
                                        [ vidraças
E sacudir o lambril onde vagueia o rato silvestre
E sacudir as tapeçarias em farrapos tecidas com a
                                        [ silente legenda.

Em meu princípio está meu fim. Agora a luz declina
Sobre o campo aberto, abandonando a recôndita
                                        [ vereda
Cerrada pelos ramos, sombra na tarde,
Ali, onde te encolher junto ao barranco enquanto
                                        [ passa um caminhão,
E a recôndita vereda insiste
Rumo à aldeia, ao aquecimento elétrico
Hipnotizada. Na tépida neblina, a luz abafada
É absorvida, irrefratada, pela rocha grisalha.
As dálias dormem no silêncio vazio.
Aguarda a coruja prematura.



(tradução Carlos Machado)


segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Soneto de amor e morte, Quevedo









Amor me teve alegre o pensamento
em um tormento cheio de esperança;
carregou-me, por vã, a confiança
o claro olhar do meu entendimento.


Do erro passado hei arrependimento,
pois quando chegue ao porto com bonança,
de quanto glória e bem-aventurança
o mundo pode dar-me, tudo é vento.


Tenho vergonha dos mal passados anos,
que reduzir pudera a melhor uso,
buscando paz, e não seguindo enganos.


E assim, meu Deus, a Ti volto confuso,
certo que hás de livrar-me destes danos,
pois minha culpa sei, e não a escuso.








Tradução: Fernando Mendes Vianna

sexta-feira, 15 de dezembro de 2017

O difícil exercício das cinzas, novo livro RCF

O difícil exercício das cinzas



"Ronaldo Costa Fernandes – autor premiado e com uma obra já reconhecida pelos críticos entre as mais criativas e significativas de sua geração – tem o dom de encantar o leitor com uma poesia com a fluência da prosa, construindo uma intimidade imediata que passa pelos cenários internos (da cartografia humana, como em “Anatomia das dores”) ou externos (da geografia urbana, como nos “riscos ariscos no céu de Brasília”, cidade que ganha nova cor em seus versos) para desvendar as paisagens mais inesperadas. Estão presentes neste seu novo livro alguns dos temas marcantes em sua obra, como a passagem do tempo– seja nos ecos proustianos de “O quarto inútil” ou às vezes metaforizada de modo surpreendente, como em “Anatomia do ciclista” – e a instável condição humana. Aliando rigor, precisão, pleno domínio da língua a algumas pitadas de humor e ironia – e principalmente com altas doses de originalidade na construção poética –, Ronaldo Costa Fernandes atinge com este difícil exercício das cinzas um novo degrau de uma obra que vai muito além de seu tempo: pois é daquelas que ganham um novo sabor a cada releitura."
                                                                                           Jorge Viveiros de Castro











quinta-feira, 14 de dezembro de 2017

A prosa e o verso maranhenses em quatro autores, por Lourival Serejo



Praça Gonçalves Dias

                                                                                                         

Sem a pretensão de fazer crítica literária, venho falar de quatro livros e quatro autores maranhenses. Refiro-me a lançamentos recentes, que confirmaram o talento desses escritores na prosa e na poesia.

O que antes era raridade – a sequência de lançamentos de livros –, nos últimos anos, em São Luís, tornou-se motivo para comemorar. São muitas edições aprimoradas, graças ao avanço técnico de novas gráficas instaladas e o destaque de profissionais que trabalham nesse desafiante artesanato de fazer livros. A Academia Maranhense de Letras tem feito o seu papel, nesse momento de expressividade, promovendo vários lançamentos, muitos deles com o selo da Casa.

Inicio esta digressão banhando-me n´O rio, de Arlete Nogueira da Cruz. A prosa da autora de Litania da velha flui como a correnteza do seu rio: tranquila, leve e envolvente. A magia que emerge da prosa de Arlete tem raízes no sentimento da terra que ela cultiva ainda hoje, mesmo tendo deixado sua aldeia há muito tempo.

A história de Pedro, que Arlete nos conta, em O rio, com muita habilidade, é a angústia que domina todo jovem, principalmente os jovens daqueles tempos, sem a facilidade de comunicação que temos hoje. É a busca de si mesmo e o desejo de conquistar o mundo. De certo modo, Pedro é Arlete, no que ela tinha de jovem inquieta e sonhadora, desejando navegar por outras águas em busca da sua afirmação.

As ilustrações de Péricles embelezam ainda mais o livro da musa do poeta Nauro Machado.

Do rio de Arlete, contemplo o Último sol nascente, de Alex Brasil.  Depois de consagrar-se como poeta, Alex atirou-se ao conto, esse gênero que cativa todos os escritores, tão fácil e tão difícil ao mesmo tempo. No meio dessa incerteza é que veio a famosa e muito citada frase de Mário de Andrade, dita em tom de desafogo diante de tantos originais para opinar: Conto é tudo aquilo que chamamos de conto.

Propositadamente, o autor deixou o conto cujo título dá nome ao livro, para o final, com o propósito de nocautear o leitor com uma história bem elaborada e bem concluída.

Por coincidência, o prefaciador do livro de Alex é o próximo autor de quem pretendo dizer alguma coisa. Já tive oportunidade de falar sobre a prosa de Ronaldo Costa Fernandes, ao comentar seu romance Um homem é muito pouco. Agora, ele volta à poesia, com a mesma competência que lida com a prosa, apresentando-nos Memórias dos porcos. O denominador comum dessa habilidade, não há dúvida, é a sensibilidade do escritor em sintonizar-se com a matéria-prima dos seus trabalhos.

Chamou-me a atenção o poema “Minha fraqueza é meu único talento”, quando o poeta diz: “Sou apenas um homem/ e um homem é muito pouco”. Nesse excerto, encontrei a chave para explicar o título do seu romance já referido: Um homem é muito pouco.

Para falar dos poemas de Ronaldo, teria que usar todo este espaço, o que ofenderia a isonomia que pretendo dedicar aos quatro escritores aqui mencionados. Destaco, só por ênfase, estes poemas que mais me cativaram: Verso e reverso, Código penal, Prescrição médica, Testamento, Carga pesada e Meu pai tem um calendário. Impossível deixar de me solidarizar com o poeta, quando ele clama: “Não posso viver num mundo/em que tudo se transforma em hipótese”.

Por fim, apraz-me falar do último romance de Waldemiro Viana: O pulha fictício. Usufruindo de sua gentileza, já havia lido os originais desse livro, muito antes de sua publicação.

Waldemiro não é mais calouro no romance. Anteriormente, já nos brindou com outros títulos: Graúna em roça de arroz (1978); A questionável amoralidade de Apolônio Proeza (1990); O mau samaritano (1999); e A toga e a tara (2010).

A receptividade que O pulha fictício está merecendo dos leitores é proporcional à naturalidade como o autor articula o enredo dos seus romances, motivando o leitor a chegar até ao fim para, então, ser compensado com o término da leitura.

Como se vê, essas quatros amostras que acabo de expor dão o toque da qualidade das nossas letras, atualmente, com novas publicações e a demonstração da capacidade desses já conhecidos escritores.


                           (Publicada no jornal O Estado do Maranhão, em 13 de abril de 2013).

terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Machado de Assis, de Lucia Miguel Pereira



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BIOGRAFIA LAPIDAR, BIOGRAFADO GENIAL,
BIÓGRAFA EXEMPLAR

Fabio de Sousa Coutinho
(Titular  do PEN Clube do Brasil
e da Academia Brasiliense de Letras.
Presidente da Associação Nacional
de Escritores – ANE)

            A paixão e o amor por Octavio Tarquínio de Sousa, intensamente correspondidos, coincidiram, na vida de Lucia Miguel Pereira, naqueles primeiros anos da década de 1930, com uma verdadeira explosão cultural. Assim é que, após período de um lustro dedicado a incansável pesquisa de fontes, saiu, em setembro de 1936,  pela  Companhia Editora Nacional, Machado de Assis (Estudo Crítico e Biográfico). Sua autora tinha, então, precoces, juveníssimos e incompletos trinta e cinco anos, a mesma idade de Machado quando compôs A mão e a luva, um de seus primeiros romances (1874). Tornava-se Lucia, com o livro seminal, uma estrela na constelação das letras nacionais. Um mês antes, em agosto de 1936, viera a lume Angústia, o romance que consagrou o alagoano Graciliano Ramos como o mais completo ficcionista brasileiro depois de Machado de Assis.
            Haviam decorrido, então, exatos vinte e oito anos da morte de Machado, e o inigualável escritor, o maior de todos, ainda não tinha merecido uma obra como a que Lucia Miguel Pereira produziu com mão de refinada esteta, admiração de leitora encantada e perspectiva crítica de superior conhecedora da vida e da obra de seu luminoso personagem.
            Antes do livro pioneiro de Lucia, surgiram diversas manifestações de apologia e louvação machadiana, mas nenhuma que pudesse ostentar a condição de biografia intelectual do gênio literário brasileiro. Em 1899, numa contundente resposta a críticas injustas e preconceituosas a Machado de Assis, Lafayette Rodrigues Pereira, sob o pseudônimo de Labieno, produziu e publicou, nas páginas do Jornal do Commercio, do Rio de Janeiro, Vindiciae – o Sr. Sylvio Romero. O impacto da contradita (em português, Vinganças) foi arrasador, a ponto de, morto o Presidente e fundador da Academia Brasileira de Letras, em 1908, Lafayette ser eleito, no ano seguinte, para sucedê-lo na Cadeira n° 23 da gloriosa instituição. Mas Vindiciae é apenas uma pronta  e firme contestação a um ataque motivado pela importância que Sylvio Romero, em livro de 1897, desejava que tivessem Tobias Barreto e a chamada Escola do Recife em face de Machado. Labieno, com verve e erudição, provou que a pretensão de Romero era infundada,  descabida e parcial.
            Poucos anos após o falecimento de Machado de Assis, em 1912, para ser preciso, seu amigo Alcides Maya, fino escritor gaúcho, dedicou-lhe um precioso ensaio, focado na forte influência inglesa que marcou as principais obras machadianas, mais especificamente o ciclo virtuoso que se iniciou em 1880, com a publicação, inicialmente na Revista Brasileira, das Memórias Póstumas de Brás Cubas. Intitulado Machado de Assis –algumas notas sobre o humour, o livro de Maya nasceu com o destino selado: seria, para sempre, um clássico dos estudos machadianos, um rigoroso apanhado das decisivas influências que William Shakespeare, Jonathan Swift, Laurence Sterne (mormente este), Charles Dickens e William Thackeray exerceram sobre Machado, diferenciando sua obra de tudo o que existia até então em nossa literatura, precisamente pela força do humor, da ironia, do sarcasmo, do riso castigando os costumes, da observação psicológica, da corrosividade, da ausência de qualquer ilusão sobre os homens. Em 2015, com apresentação do acadêmico e professor Alfredo Bosi, o Machado de Assis de Alcydes Maia foi relançado, em terceira edição (a segunda saíra em 1942), pela ABL, na Coleção Afrânio Peixoto.
            Entretanto, Alcides Maya não escreveu uma biografia. Seu livro é de extração ensaística, de qualidade rara, mas um ensaio. Na mesma categoria se inserem os ensaios críticos de Araripe Júnior, cobrindo o período de 1895 a 1900, em que o cearense analisa e interpreta, com visão de expert, o alcance da obra machadiana, que, naquele momento, já abarcava os três romances que dela fizeram conjunto insuperável de criação romanesca: o mencionado Memórias Póstumas de Brás Cubas, que saiu em livro em 1881, Quincas Borba, de 1891, e Dom Casmurro, de 1899. Mas Araripe, a exemplo de Alcides Maya, não foi biógrafo de Machado de Assis. Interpretou sua obra de modo impecável, teve a nítida percepção de que se estava diante de uma nova estética na Literatura Brasileira, porém não biografou, na medida clássica da expressão, o imenso vulto que marcou nossas letras de modo tão avassalador.
            Quem mais se aproximou de fazê-lo, quem ficou mais próximo de uma biografia de Machado, antes de Lucia Miguel Pereira, foi Alfredo Pujol, numa série de sete conferências, proferidas ao longo de quase três anos, de novembro de 1915, a primeira, a março de 1917, a sétima, na Sociedade de Cultura Artística de São Paulo. Alguns meses após a última, editou-se o volume reunindo todas elas, com o título de Machado de Assis – Conferências, sob a égide da Typographia Levi. Recentemente, em 2007, o livro de Pujol foi republicado em caprichada coedição da Academia Brasileira de Letras e da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.
            Advogado e bibliófilo, dono de estupenda biblioteca, Alfredo Pujol se tornara, pela leitura incessante, admirador incondicional da obra machadiana. Suas conferências têm, portanto, as características da paixão, do culto à memória de Machado de Assis, do amor de um autêntico precursor dos biógrafos machadianos. Paciente, determinado e dedicado, Pujol percorreu nas suas célebres sete conferências, livro após livro, toda a produção de Machado, num trabalho sem descanso de divulgação e afirmação, iniciado quando eram decorridos apenas sete anos da morte de Machado de Assis e ainda sob o impacto da crítica destrutiva e negativa de Sylvio Romero, não obstante já ter sido contraditada por Lafayette Rodrigues Pereira, Araripe Júnior e José Veríssimo. Aqui, de novo, não se tratou de uma biografia no sentido técnico, e sim de um preito de reverência, da palavra pronunciada com riqueza de informações concretas e incontida veneração, enfim, das impressões descritivas de um leitor genuinamente apaixonado.
            Por volta  de 1932, surgiram os livros de Fernando Nery, Vianna Moog, Mário Casasanta e a reedição, em Minas Gerais, do Vindiciae, de Lafayette Rodrigues Pereira. Em 1935, outro gaúcho, Augusto Meyer, publicou seu revolucionário ensaio machadiano, livro de alto quilate, reeditado algumas vezes em décadas posteriores. Meyer pôs em relevo o lado demoníaco, subterrâneo, de Machado, traduzido em amargor e ódio à vida, toda uma filosofia niilista e trágica a envolver seus contos e romances de uma atmosfera densa de pessimismo e derrotismo.
            Biografia mesmo, na acepção mais estrita e corrente do termo, foi Lucia quem primeiro fez. Com o subtítulo Estudo Crítico e Biográfico, ela soube mostrar Machado de Assis como um complexo e humaníssimo personagem brasileiro e deu à sua obra uma interpretação de cunho psicológico, social e cultural que até hoje, dezenas de biógrafos, dúzias de biografias e centenas de interpretações depois, permanece como referência inafastável nos estudos machadianos.
            Em uma antológica sucessão de capítulos (vinte e um, no total) e passagens memoráveis, lastreada em longo período investigativo e produzida com absoluto domínio de recursos estilísticos, Lucia Miguel Pereira evidenciou, no seu primeiro grande livro, que não haverá, em nossa literatura, uma biografia dessa natureza – biografia e estudo crítico de um puro homem de letras.
            Lucia fixou, para a eternidade, a vida de um mestiço de origem humilde – filho de um mulato carioca, pintor de paredes, e de uma imigrante lusitana da Ilha dos Açores – que, tendo frequentado apenas a escola primária e sido obrigado a trabalhar desde a infância, alcançou alta posição na burocracia e obteve a consideração social numa época em que o Brasil era ainda uma monarquia escravocrata. É certo, e justo frisar, que, graças às tendências literárias do Imperador Pedro II, o valor intelectual era então mais acatado, em comparação com o econômico e, até mesmo, com os valores hereditários.
            Autodidata, Machado se formou na Biblioteca do Real Gabinete Português de Leitura (localizada na Rua Luís de Camões, n° 30, no centro da cidade do Rio de Janeiro), valendo notar que, na presidência de Machado de Assis (1897-1908), a ABL veio a realizar várias sessões solenes, de posse e de saudade, no Real Gabinete Português de Leitura. Foi a volta triunfal de Machado às suas mais caras origens culturais, ao berço de sua prodigiosa ascensão intelectual e social.
Aprendiz de tipógrafo e, depois, revisor, tudo Machado de Assis aprendeu por si. E pelo esforço próprio foi erguendo o espírito e depurando o gosto de tal modo que aos 42 anos, ao publicar em livro as Memórias Póstumas de Brás Cubas, se apresentou perfeito na forma, sem vestígios do autodidatismo e da falta eventual de um ambiente familiar socialmente elevado. Foi precoce - seu primeiro poema data dos 16 anos  –, triunfou cedo, viu-se consagrado, como poeta, aos 25 anos, com Crisálidas, fez a sua evolução dentro de uma época literariamente convencional, viveu sempre no Brasil, longe dos grandes centros da civilização literária, prodigalizou-se em colaborações jornalísticas, obteve um êxito prematuro em contos ainda balbuciantes e romances sem originalidade, julgou-se, talvez, principalmente poeta – e nenhum desses fatores negativos o prejudicou e nada impediu a eclosão, quase súbita, da obra novelesca de língua portuguesa mais reveladora de genial poder de análise psicológica.
Como demonstra Lucia Miguel Pereira, o poeta parnasiano das Ocidentais não é, sem dúvida, desvalioso, e quem escreve o soneto A Carolina ­– a mulher de Machado, a portuguesa Carolina Augusta Xavier de Novais, que tão beneficamente influiu na sua vida – merece figurar em qualquer antologia da lírica em nosso idioma. Mas é tão excepcional o valor do contista e do romancista que o brilho de sua estrela poética empalidece, aos olhos de sua primeira e mais importante biógrafa. Também o seu teatro ficou na sombra.
Nunca se deu, aliás, é também Lucia quem registra, na Literatura Brasileira, e muito raramente em qualquer literatura, um fenômeno como o de Machado de Assis, que, quase de repente, já na maturidade, se pôs a fulgurar com brilho próprio e tão intenso que passou a ser, e ainda hoje o é, o mais original escritor do Brasil. Antes dos 50 anos, pôde ser celebrado pelos contemporâneos como “o primeiro de todos”, “o único” – e, se não é o único, numa literatura que conta alguns valores absolutos, é, pelo menos, o maior escritor brasileiro de todos os tempos, o mais extraordinário contista da língua portuguesa e um dos raros romancistas de interesse universal, como o atestam as traduções das suas obras mais representativas para os principais idiomas cultos, sem que haja influído nessa referência a atualidade dos seus livros, mas, sim, a perenidade de sua quase ferina análise da alma humana.
 Para Lucia Miguel Pereira, as Memórias Póstumas de Brás Cubas e o Dom Casmurro, sem a menor dúvida, mas também Quincas Borba, Esaú e Jacó, de 1904, Memorial de Aires, de 1908, e muitos dos contos de Machado, incluídos em Papéis Avulsos (1882), Histórias Sem Data (1884), Várias Histórias (1896) e Páginas Recolhidas (1899), dão-lhe o direito de ocupar o topo da literatura brasileira, pela originalidade da concepção, pela agudeza dos conceitos, pela penetrante análise dos sentimentos e pela perfeição do estilo sóbrio e conciso numa literatura derramada. Mas, segundo Lucia, só a capacidade criadora, que permitiu a Machado de Assis subtrair as personagens dos seus melhores romances e contos às contingências de tempo e de lugar, tornando-as emblemáticas das paixões humanas, consideradas em absoluto, poderia fazer dele o escritor colossal que é.
            Machado teve em Lucia Miguel Pereira uma biógrafa que o honrou sobejamente, produzindo uma obra notável, uma “pesquisa biográfica e crítica da melhor qualidade”, no dizer abalizado e culto de Astrojildo Pereira, ele mesmo autor de primoroso livro de ensaios machadianos, sob o enfoque próprio de sua visão materialista das relações sociais, saído do prelo em 1959, ano da morte de Lucia.
            Em dezembro de 1936, ao completar 35 anos de idade, Lucia Miguel Pereira acabava de ser consagrada como escritora, circunstância que premiou seu monumental esforço de leitura, interpretação e divulgação da obra machadiana. Exercia, também, em caráter regular, a crítica literária nas páginas do Boletim de Ariel, posição que manteve até 1937.
            No plano pessoal, celebrava o delicioso início de uma relação amorosa e conjugal com Octavio  Tarquínio de Sousa, naquilo que seria o ponto mais alto da existência de dois seres de exceção: vida de paz, de mansidão, de estudo, de recolhimento, “vida de reciprocidade no amor pelos esponsais do sangue”, nas palavras irretocáveis de Alceu Amoroso Lima.
            O reconhecimento público de Lucia, já tratada como ensaísta das mais vigorosas de uma geração de expoentes, veio com a atribuição, à sua formidável biografia machadiana, do maior prêmio literário da época, concedido pela Sociedade Felipe d’Oliveira, fundada em 1933 e composta por quinze intelectuais brasileiros de primeira grandeza, naqueles idos. A última edição revista por Lucia Miguel Pereira foi a quinta, de 1955. Nela, a exemplo das quatro que lhe antecederam, o parágrafo final se manteve intacto, contemplando a síntese das sínteses, jamais superada, sobre o magnífico biografado:
            “À medida que vai recuando para o passado, sentimos melhor o que representa para o Brasil esse mestiço que tanto elevou a sua gente e o seu país, a pureza dessa personalidade que paira sobre a literatura brasileira como um símbolo da nobreza do pensamento e do poder do espírito.”


Para fazer um soneto, poema Carlos Penna Filho


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Tome um pouco de azul, se a tarde é clara,
e espere pelo instante ocasional.
Nesse curto intervalo Deus prepara
e lhe oferta a palavra inicial.

Aí, adote uma atitude avara:
se você preferir a cor local,
não use mais que o sol de sua cara
e um pedaço de fundo de quintal.

Se não, procure a cinza e essa vagueza
das lembranças da infância, e não se apresse,
antes, deixe levá-lo a correnteza.

Mas ao chegar ao ponto em que se tece
dentro da escuridão a vã certeza,
ponha tudo de lado e então comece.

segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

Retrato do artista quando jovem, James Joyce




                Há um movimento circular, giratório, ao início do romance de Joyce, escrito entre 1904-1914, que permanece por várias páginas e leva ao leitor uma sensação de vertigem. Ao fugir do realismo, Joyce ingressa na narrativa do século XX onde predominará o fragmentário, o recorte, a dúvida antes que a onisciência e o personagem, como diria Zeraffa, engolfado por uma “miríades de sensações”, antes que descrição psicológica, coerente e linear do herói.
                Cabe bem aqui a afirmação de Forster: ”Gertrude Stein triturou e pulverizou seu relógio para dispersar seus fragmentos sobre o mundo como os membros de Osíris. Isto porque quis libertar o romance da tirania temporal, fazendo-lhe exprimir somente a vida dos valores.” Stephen Dedalus é puro papel sensível onde a fotografia do mundo vai sendo impressa. Logo não importam datas ou certa cronologia. Embora a narrativa avance desde a infância até a adolescência, não há explicação ou fixação de datas entre uma cena ou outra, o corte é abrupto e Joyce descreve a atuação do jovem Dedalus como se duas ações fossem contíguas e não houvesse intervalo entre elas.
                Joyce utiliza dois procedimentos, grosso modo, que são a narração pura e simples das ações dos personagens e, em vez da análise psicológica, aprofunda o perquirir do comportamento mental de Dedalus ou o seu estado de espírito. O grande drama do personagem adolescente é a luta do pecado dentro do espírito de formação católica e, mais ainda, jesuítica. As emoções tumultuadas do personagem fazem o autor suspender a ação e descrever as impressões do personagem, seja diante da casa da amada, seja no prostíbulo da cidade.
                “Queria pecar com alguém da sua espécie, forçar um outro ser a pecar com ele e exultar juntos no pecado. Sentia qualquer presença mover-se irresistivelmente para ele das trevas, uma presença sutil e murmurosa como uma torrente enchendo-o todo. O seu murmúrio alcançava seus ouvidos como o murmúrio de qualquer multidão em sono.”
                O clima de catolicismo exacerbado me incomoda (alguns dirão que a essência do livro é a discussão teológica, e eu aceito). O que me causa certo tédio não são as discussões teológicas, mas, por exemplo, a exaustiva, longa, desinteressante apresentação do retiro espiritual feita por membro do clero explicando (sem dialética) o que vem a ser aquele momento de religiosidade para os alunos que o ouvem. Não há criatividade, parece que Joyce copiou de algum catecismo as três páginas de lugares-comuns.
                O romance toma outro rumo, mais denso, original e ativo quando o personagem, instado a ser padre, reconhece sua mundanidade e sua opção pela vida não religiosa. O drama que antes era pueril, agora se torna mais adulto e o romance empina-se.
                Desagradam-me um pouco as mudanças de estilo, ou se quiserem, as mudanças de discurso. Há três modalidades de expressão que não se mesclam: uma mesma longa cena pode conter as três, separadas apenas por indicação de parágrafo. São elas: primeiro, as ações mais simples, quando o discurso se torna referencial como a ida ao colégio, as conversas, as descrições de paisagem (poucas). A segunda, num nível outro de construção, estão os pensamentos sobre cultura, feitos de forma mais clara, incluídas aí considerações concretas sobre a realidade do colégio, da vida familiar (observar que elas se tornam mais densas quanto mais o personagem passa da infância à juventude), mas de qualquer maneira são elaboradas como num ensaio. Nesta última podemos citar a seguinte passagem (para os brasileiros curiosa é passagem em que aparece a frase que será título do livro de Clarice Lispector, Perto do coração selvagem, sugerida pelo amigo Lúcio Cardoso):

“Ele estava longe de tudo e de todos, sozinho. Ele estava desligado de tudo, feliz, perto do coração selvagem da vida. Estava sozinho, e era jovem, cheio de vontade, e tinha um coração selvagem.”

                E a terceira refere-se a uma expressão mais nebulosa, típica do impressionismo pelo qual Virginia Woolf advogava, inclusive aproximando a narrativa à pintura, perguntando-se porque a prosa não podia ser prenhe de descrições da desorganizada vida mental submetida às impressões da realidade como nos quadros dos franceses do fim do século XIX. (RCF)


sexta-feira, 1 de dezembro de 2017

O homem do violão azul, Wallace Stevens






I

Homem curvado sobre violão,
Como se fosse foice. Dia verde.
Disseram: "É azul teu violão,
Não tocas as coisas tais como são".
E o homem disse: As coisas tais como são
Se modificam sobre o violão".

E eles disseram: "Toca uma canção
Que esteja além de nós, mas seja nós,
No violão azul, toca a canção
Das coisas justamente como são".

II

Não sei fechar um mundo bem redondo,
Ainda que o remende como sei.
Canto heróis de grandes olhos, barbas
De bronze, mas homem jamais cantei.
Ainda que o remende como sei
E chegue quase ao homem que não cantei.
Mas se cantar só quase ao homem
Não chega às coisas tais como são,
Então que seja só o cantar azul
De um homem que toca violão.



(tradução Paulo Henriques Britto)

Pessoa é mais amado no Brasil, Inês Pedrosa

A escritora Inês Pedrosa.
A diretora da Casa Fernando Pessoa, Inês Pedrosa, afirmou hoje, dia em que se assinalam 78 anos desde a morte do poeta, que Pessoa tem mais força no Brasil do que em qualquer outro país, durante a estada em São Paulo para participar num debate sobre escrita.

"Fernando Pessoa é mais amado no Brasil do que em qualquer outro lugar do mundo, inclusive Portugal", disse Pedrosa à agência Lusa, por telefone.
De acordo com a escritora, não há dados estatísticos para apoiar esta opinião, mas a experiência à frente da Casa Fernando Pessoa, em Lisboa, mostrou que mais de 60 por cento dos visitantes são brasileiros.
Outros sinais do interesse dos brasileiros pelo poeta, são as ligações recebidas do Brasil pela Casa a cada dois anos, de pessoas que agendam as férias para o período do congresso sobre Fernando Pessoa, afirmou Pedrosa.
Além disso, há constantes contactos de companhias brasileiras de teatro que realizam adaptações sobre a obra do poeta, disse a escritora.
"Em Portugal, sinto que a sombra de Pessoa é tão forte que alguns poetas querem afastá-la, percebendo que ela os obscurece. Em 1985, na época do 50.º aniversário do morte do poeta, surgiu até o bordão 'tanto Pessoa já enjoa', o que não aconteceria no Brasil", afirmou.


(fonte: Diário de Notícias)

quinta-feira, 30 de novembro de 2017

A invenção da cidade pela literatura 2, RCF








(trecho de ensaio do livro A cidade na literatura e outros ensaios. São Luís, Academia Maranhense de Letras, 2016) 



Todas as duas permanecem no tempo, de outro ponto de vista: a de pedra, pela razão urbanística exposta acima; a das relações sociais porque as relações de classe podem ter desaparecido, mas permanecem os sentimentos (o arrivismo e ao mesmo tempo pureza de Rastignac, a abnegação paterna de Goriot) que faz o romance eterno, que “atualizam” a trama em razão de que o intercurso humano, as fragilidades, defeitos, os dramas da personalidade se configuram como um estado permanente do homem.

Balzac, comentando a pensão Vauquer, o encontro de pessoas díspares, mas da mesma condição social, reunidas num mesmo espaço, diz que “uma tal reunião devia oferecer, e oferecia, em miniatura, os elementos de uma sociedade completa”.[1] Temos aí o processo – que não acreditamos seja real, mas que o autor julga pertinente – de miniaturização da cidade. A cidade, claro, entendida agora como intercurso social. Esta ideia de que pode comprimir e representar o todo por intermédio de um recorte não corresponde à realidade empírica. Senão, vejamos. Estão alijados da miniaturização os operários, as classes baixas, os políticos, os burocratas, etc. A miniatura representa apenas um feixe restrito de relações e não nos dá a cidade – como quer acreditar o autor e vários críticos – em sua totalidade. A cidade, repetimos, se oferece justamente nas relações humanas, mas não a cidade em sua completude, fenômeno que nenhum autor pode alcançar, embora Balzac intente o projeto. E de maneira tão clara que o título que dá a sua coleção de romance é nada mais nada menos do que uma pretensão globalizante e totalizadora: a comédia humana.[2]

Contraditoriamente, Balzac deixa escapar que sua ideia totalizante não pode ter muita viabilidade. Deixa-se trair por trechos como este:


            “A bela Paris ignora essas figuras pálidas de sofrimentos morais ou físicos. Mas Paris é um verdadeiro oceano. Sondai-o, jamais conhecereis suas profundidades. Percorrei-o, descrevei-o! Por mais cuidados que tenhais em percorrê-lo, em descrevê-lo; por mais numerosos que sejam os exploradores desse mar, haverá sempre um lugar virgem, um antro desconhecido, flores, pérolas, monstros, algo inaudito, esquecido pelos mergulhadores literários. A Casa Vauquer é uma dessas monstruosidades curiosas.”[3]


            Ora, o que acontece aqui: o autor reconhece a grandiosidade da cidade, identifica-a como maior que seu discurso, que o romance apenas pode apreender um segmento – ou fragmento – da cidade. A imagem de um oceano é a imagem de um narrador derrotado pela grandeza do seu assunto: antes percebe que seu narrador não pode conhecer a vastidão daquilo que, dentro do código das imagens, é a imagem de inconsciente, vastidão, lugares inauditos e pouco alcançados pela luz exterior. Para ele, o narrador seria então “um mergulhador literário” que não poderia dar conta de um universo tão vasto. Embora, aqui e ali, defronte-se com uma “monstruosidade curiosa”. É interessante que Balzac se refira à Casa Vauquer como flor ou pérola, dentro da enumeração das “coisas” do mar, vasto oceano: “lugar virgem, antro desconhecido, flor, pérola, monstro, algo inaudito”. A Casa Vauquer é o lado escuro deste oceano, é a monstruosidade da sociedade parisiense, longe da “bela Paris”.

            É Rastignac quem vai fazer a ligação das duas Paris: a da pensão Vauquer e da elegância das carruagens desfilando no Champs-Elysées. Elo entre dois fragmentos de Paris, Rastignac será ainda mais conducto na medida em que, pela juventude e ambição, circula mais pelas duas Paris. O velho Goriot também pertence a dois mundos, embora tenha sido abastardado no mundo das filhas, no universo nobre das filhas. Balzac traça as características de comportamento de Rastignac, ainda como estudante que procura entender como uma certa Paris, a Paris nobre, funciona:


            “Um estudante apaixona-se então por futilidades que lhe parecem grandiosas [ ... ]. Ele arruma a gravata e faz pose para a mulher das primeiras galerias da Opéra-Comique. Nessas iniciações sucessivas, ele se despoja de seu alburno, aumenta o horizonte de sua vida e acaba por conceder a superposição das camadas humanas que constituem a sociedade. Começando por admirar as carruagens que desfilam nos Champs-Elysées num belo dia de sol, logo passa a invejá-las...”[4]


            Rastignac aproveita-se da renda rural e curta da família que faz sacrifícios para que se mantenha em Paris. Em sua ânsia de ascensão, não tem dó de usar economias domésticas para seus luxos. Interessante como o narrador, numa linguagem ainda hoje usada, refere-se à sociedade como o agrupamento humano das camadas superiores. O narrador balzaqueano vai fazer uma análise dessa sociedade, através da visão deslumbrada de um provinciano, embora, o próprio narrador seja cruel e pouco simpático à nobreza parisiense. Outro ponto de vista, desta vez dado por outro personagem, cínico e niilista, o Vautrin, aparecerá para carregar nas tintas mais amplas de um convívio humano degradado pela ambição, luta pelo poder e para alcançar um lugar na classe dominante. Só que o narrador cede a palavra a Vautrin, quase como se eximindo de uma crítica mais perversa, crua e impiedosa, deixando para sua onisciência as considerações via Rastignac – logo o narrador vê Paris apoiando-se em Rastignac, o grande elemento “urbano”, no sentido de costurar relações e revelar procedimentos de convívio. Mesmo considerando o personagem, ao princípio, inseguro e provinciano, é a partir dele que o narrador, mais extensamente, opõe as duas cidades. “Você é ainda muito jovem para conhecer bem Paris”, diz Vautrin para Rastignac. Outro narrador em outro romance poderia dizer “Você é ainda muito jovem para conhecer a vida”. Neste sentido Paris e Vida se acomodam. Conhecer o mecanismo de poder, sedução e ocupação de espaço na sociedade representa ingressar nos procedimentos de “urbanidade”, representa, para Vautrin, confundir a própria cidade como representação da vida.




[1] Idem, p.21.
[2] Poderíamos até mesmo afirmar que Balzac vai mais além: não quer apenas a totalidade de Paris, nem mesmo da França, mas da espécie humana. Ora, essa pretensão é lícita e faz parte do repertório da época em que ainda se podia acreditar numa apreensão totalizadora da realidade. O problema dessa idealidade em Balzac, visto da maneira como constrói não somente Pai Goriot, mas o conjunto de sua obra, pode ser discutido em outro espaço temático. De qualquer maneira, o que gostaríamos de reafirmar é o caráter singular (valeria também incluir neste singular o processo de singularização, de Slovski), parcial, menor, recortado e, ainda mais, enganoso, no sentido que entende um recorte como uma totalidade.
[3] Idem, p. 17-18.
[4] Idem, p. 20.

A invenção da cidade pela literatura 1, RCF



(trecho de ensaio do livro A cidade na literatura e outros ensaios. São Luís, Academia Maranhense de Letras, 2016) 

       Em Père Goriot, Balzac apresenta uma Paris da pensão Vauquer, ninho pequeno-burguês, frequentemente visto como uma metáfora ou microcosmo de Paris ou os salões e casas fidalgas por onde transita o arrivismo de Eugène Rastignac. Veremos como aparece a cidade dentro desta narrativa de Balzac especificamente para demonstrar uma tese: a cidade não é a cidade real, mas as relações que em determinado espaço e tempo são mantidas, dentro do espectro ficcional e que revelam menos a cidade que a cidade ideal do romancista, ou a cidade dentro do romance, que não é verdadeiramente uma cidade eterna, fixa no tempo, ou uma cidade de cimento e pavimentos, representável.

Ora, Paris do século XIX não se restringe a uma pensão nem aos salões e teatros de ópera que se opõem como cenários para compor a vida dos personagens do Pai Goriot. Desde o personagem que dá título ao livro, sinônimo de devoção paterna e símbolo de repúdio das classes nobres pela origem mercantil dos burgueses em ascensão, até Rastignac, jovem provinciano disposto a vencer a todo custo para ascender a um mundo de luxo, riqueza, aparência e títulos, embora habite a pobre pensão onde o autor primordialmente arma o palco para o seu drama. A Paris real é muito mais complexa, densa, diversificada. A Paris real é composta por números, estatísticas, ruas, avenidas, prédios, labores múltiplos na indústria, no comércio, nos serviços. É uma Paris operosa, burocrática, fabril, pública ou privada, uma Paris muito mais ampla que o reduzido espaço que o autor de Pai Goriot recorta e nomeia Paris.

Em seu livro Seis passeios pelos bosques da ficção (“O estranho caso da rue Servandoni”. In: Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras, 1997), Umberto Eco comenta o erro urbanístico de Alexandre Dumas, em Os três mosqueteiros. Dumas faz Aramis andar sonhador e apaixonado, acompanhado das estrelas, pela rua Servadoni que não existia ainda na época em que se passa o romance. “Infelizmente”, escreve Eco, “nosso leitor empírico por certo ficará comovido com a menção da rue Servandoni porque Roland Barthes morou lá; contudo Aramis não poderia ter se comovido, porque a ação transcorre em 1625 e o arquiteto florentino Giovanni Niccolò Servandoni nasceu em 1695, concebeu a fachada da igreja de Saint-Suplice em 1733 e se tornou nome de rua só em 1806.”[1] Eco transformou-se num “leitor paranóico” e, com mapas do século XVII, percorreu a Paris de Os três mosqueteiros. Ele afirma que estas observações são irrelevantes para o leitor-modelo de Dumas – e eu ainda acrescentaria que são irrelevantes para qualquer leitor. É onde tentarei chegar: as cidades do romance são cidades idealizadas, pouco importa se a rua Servadoni existia com este nome ou não, ou, ainda, Aramis atravessar uma rua que, no tempo do romance, era interrompida, e só mais tarde, já no tempo do autor, estará aberta.

Eco lembra os romances chamados ucrônicos, “que se passam num tempo histórico totalmente maluco, em que Júlio César duela com Napoleão e Euclides consegue por fim demonstrar o teorema de Fermat.”[2] Ainda afirma que o leitor-modelo de Os três mosqueteiros não é o leitor-modelo de Finnegans Wake, de James Joyce, que requer uma série de dados, informações e cultura que os diferencia. Eco diz que o leitor-modelo de Dumas pouco se importaria com essa informação truncada, pois não tem informação para tanto. Mas logo afirma que o processo ficcional, seja de Dumas seja de Joyce, vai requerer do leitor um comportamento comum, onde o conhecimento ( Eco chama de “enciclopédia” do leitor ) é secundário perto de um procedimento de apreensão da narrativa.


“O problema com o mundo real é que, desde o começo dos tempos, os seres humanos vêm se perguntando se há uma mensagem e, em havendo, se essa mensagem faz sentido. Com os universos ficcionais sabemos sem dúvida que têm uma mensagem e que uma entidade autoral está por trás deles como criador e dentro deles como um conjunto de instruções de leitura.”[3]


            A cidade revela-se através de suas relações entre pares, no intercurso social, no recorte não urbanístico, mas no desenho criado no contato entre personagens de uma mesma classe social – Rastignac e pai Goriot – ou entre classes diversas – Rastignac e a baronesa de Nucingen, filha de Goriot. As filhas de Goriot veem às escondidas o pai, proibidas pelos maridos de encontrar o velho burguês e comerciante. Os maridos, nobres, porém falidos, têm vergonha da origem das esposas, ainda que usufruam o dinheiro comerciante do pai Goriot. Rastignac se apaixona pela filha de Goriot, o que cria cumplicidade entre eles na velha pensão Vauquer. O traço urbanístico – prédios, construções, avenidas, etc. – não conformam os personagens, só servem para pontuar a rua de Nova de Santa Genoveva[4] (pensão Vauquer) como espaço da classe média e o faubourg Saint Michel, os Italiens ou a Ópera como expressão da riqueza. O traçado urbanístico não serve aqui para se opor, ajudar, favorecer, antagonizar ou oprimir os personagens. A Paris de Pai Goriot não existe mais, embora exista ainda a Paris com o mesmo traçado urbanístico. Logo, a cidade que desapareceu é a cidade do intercurso social: a nobreza, as relações entre uma classe social hierarquizada e suas relações de poder, discriminação e decadência. Ora, logo temos duas Paris: uma, apenas cenário, e outra, que acolhe os protagonistas onde se passa a ação do romance.




[1] ECO ( p. 110 )
[2] Idem, ibidem, p. 114
[3] Idem, ibidem, p. 122.
[4] “Nenhum bairro de Paris é mais horrível nem mais desconhecido. A rua Nova de Santa Genoveva é como uma moldura de bronze, a única que convém a esta narrativa, para a qual a inteligência nunca estaria preparada suficientemente por cores escuras e ideias graves, assim como, de degrau em degrau, o dia vai-se apagando e a voz do guia diminuindo, enquanto o viajante desce às Catabumbas. Quem decidirá o que é mais horrível de se ver, corações secos ou crânios vazios? [ ... ] Entra-se nessa alameda por uma portinhola, encimada por uma tabuleta onde se lê: CASA VAUQUER, e embaixo: Pensão burguesa para os dois sexos e outros.” (BALZAC, Honoré. Pai Goriot. Rio de Janeiro: Ediouro, 2000).

(continua)

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Os ruídos das coisas ao cair, Juan Gabriel Vásquez


Os ruídos vindos da Colômbia



                                                                                     Lourival Serejo



A literatura colombiana tornou-se mais conhecida e respeitada depois de Garcia Márquez, depois dos “Cem anos de solidão”, precisamente. Arrebatando o Prêmio Nobel de Literatura, em 1982, Garcia Márquez elevou a literatura latino-americana, a ponto de despertar interesse pelo seu estudo e conhecimento em todo o mundo. O escritor laureado tornou-se tão grande, que deixou de ser só da Colômbia para tornar-se um escritor representativo de toda a América Latina, assim como é atualmente o peruano Vargas Llosa, outro ganhador do Nobel de Literatura.

A literatura sul-americana tem a abundância dos fatos reais que distinguem as coisas deste continente, seja no Uruguai, com Onetti; seja no Chile, com Skármeta e Bolaño; seja na Argentina, com Ricardo Piglia; ou no Peru, com Vargas Llosa.

Os escritores colombianos que se seguiram a Garcia Márquez são, de certa forma, seus discípulos, mesmo que não tenham optado pelo realismo mágico. É o caso de Juan Gabriel Vásquez, que nos traz uma obra apoiada em fatos reais da vida social e política daquele país, com o título “O ruído das coisas ao cair” (Objetiva, 2013). Outros escritores colombianos já estão traduzidos no Brasil, como Santiago Gamboa e Efraim Reys, este com o irreverente título “Técnicas de masturbação entre Batman e Robin”.

Interessei-me pela leitura do livro de Juan Gabriel, movido pela curiosidade despertada pelo título e pelo autor, um nome novo que ainda não conhecia, apesar de ser um escritor premiado e com o peso de um currículo grandioso. Não me arrependi da iniciativa, pois fui recompensado com uma leitura  satisfatória.

Trata o romance de Juan Gabriel, vencedor do Prêmio Alfaguara de melhor romance, em 2011, da busca pela história de um amigo de mesa de sinuca, assassinado ao lado do personagem narrador, Antonio Yammara, numa avenida de Bogotá. A partir da busca pela vida de Ricardo Laverde, Antonio, professor de direito, atira-se a unir as pedras de um quebra-cabeça que o faz mergulhar no seu passado, misturado com a história do seu país, e debater-se com suas angústias existenciais, “pois ninguém que viva o suficiente pode se surpreender com o fato de sua biografia ter sido moldada por acontecimentos distantes, por vontades alheias, com pouca ou nenhuma participação de suas próprias decisões”.

Aproveita-se o narrador onisciente para explorar suas memórias: a infância, em Bogotá, a prisão de Pablo Escobar, os protestos estudantis contra a Guerra do Vietnã, a morte de Kennedy e outros acontecimentos das últimas décadas do século passado, incluindo as ações contra o narcotráfico. O livro começa com a narração da morte de um hipopótamo do zoológico de Pablo Escobar. A lembrança do narrador sobre esse fato decorre da impressão que teve ao visitar, às escondidas dos seus pais, esse local quando era estudante. O autor mistura ficção e realidade no enredo do romance, tornando-o mais verossímil.

O ruído que se encontra no livro de Juan Gabriel é a gravação da queda de um Boeing da American Airlines vindo de Miami para Bogotá, no momento em que se preparava para pousar no aeroporto de Cali. Dentre os passageiros mortos, estava a mulher de Ricardo Laverde, Elaine (ou Elena) Fritts, que vinha para reencontrá-lo, depois de muitos anos ausente, devido ao tempo em que estava preso. A fita, adquirida por ele, não se sabe como, continha a gravação da caixa-preta do avião e narrava os últimos momentos de desespero vividos pelos pilotos. A obsessão de ouvir essa gravação passou de Ricardo Laverde para sua filha Maya.

Esse fato ocorreu, na vida real, em 20 de dezembro de 1995. O avião chocou-se com as montanhas próximas do aeroporto, depois de um desvio equivocado na sua rota de descida. O apelo dramático dos pilotos, tentando subir a aeronave, quando perceberam o erro, é o mesmo que intitula o último capítulo do livro: Sobe, sobe, sobe.

A partir do segundo capítulo de “Os ruídos das coisas ao cair”, o autor consegue envolver o leitor na busca das respostas que ele e  a filha de Ricardo Laverde procuram para entender a vida de um homem desconhecido para ambos e que, pelas circunstâncias da sua morte, deixou a curiosidade como herança para aqueles que se aventuraram a penetrar no labirinto de sua vida.