quarta-feira, 1 de maio de 2019

O desperdício, conto RCF



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O pensamento é longo. O diabo do pensamento não tem paredes. Quanto mede a obsessão? Ele era composto por músculos, humores, líquidos e obsessões. A obsessão dele era a sobra. O mundo não podia ser restante. Deveria ser exato como soma.
         O que ele não sabia era se a morte podia ser considerada desperdício. É certo que, durante a vida, desperdiça-se muito. E que este desperdício cessa com a morte. Mas a questão não era para ser posta desta maneira. E, sim, se, depois da morte, o corpo era mais desperdício do que em vida. Ou seja, em outras palavras, não interessa se o morto não desperdiça, mas ele queria saber se entre o corpo morto e o corpo vivo, qual deles se desperdiça mais?
         Depois, obviamente, de vigiar os desperdícios ordinários como água, papel, luz, chamadas telefônicas – não só seus desperdícios, mas o desperdício alheio, na maioria das vezes, gerando discussões, caras fechadas, vizinhos que cortaram relações, a família que o marginalizara, uns chamando-o de excêntrico, outros de inconveniente – o certo é que chegou a uma conclusão impeditiva: o pensamento também desperdiçava. Era preciso eliminar o pensamento mecânico, cotidiano, ordinário, desnecessário e, certamente, perdulário.
         O pensamento perdulário era o lugar-comum, as ruminações automáticas, o raciocínio viciado. Para evitá-los havia de fazer um esforço sobre-humano e, mais ainda, treinar a mente. O pensamento que não se desperdiça, logo, deveria ser o contrário. O que trouxesse novidade, luz, idéia transformadora ou mesmo disparatada, deveria ser visto como pensamento inquieto e ousado. Ou melhor, um pensamento não perdulário, um pensamento econômico.
         Ele, afora a discussão interna sobre quem desperdiçava mais, se o corpo vivo ou o corpo morto, decidiu vigiar também o desperdício da vida. O difícil era delimitar o que era vida excessiva. Não lhe interessava considerações e coros alheios. Ele se perguntava o que podia cortar em sua vida para que não desperdiçasse.
         Deitar-se, alimentar-se pouco, somente pensar o necessário e útil, imprescindível, o pensamento raro, não, não era a saída. A cama poderia também ser vista como desperdício horizontal. Poderia aprisionar-se. Mas o corpo necessitava de energia, músculo, excrescência – os corpos, visivelmente exteriores, são feitos de excrescências, vejam os membros, há excrescência mais significativa e simbólica do que os membros?
         O trabalho era desperdício, ora se não, já o havia abandonado fazia tempo. O trabalho é um mecanismo de relógio, músculo de horário, roldanas feitas de veia e sangue, o sujeito desperdiça a vida atrás de uma mesa. Não conseguia pensar no trabalho sem que a imagem de uma mesa devorando-o, infectando-o de cupim e papel, tornando sua pele seca, sugando-lhe a seiva mínima da dignidade, o invadisse de forma inquietante. O trabalho rotineiro era invenção não do diabo, mas de um Deus patrão.



(Manual de Tortura. Contos, 2007)

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