terça-feira, 9 de abril de 2019

Sonho de uma noite de verão, conto RCF




(Publicado no jornal Correio Braziliense)

Estou na Rodoviária. A fila anda. Entro no ônibus. Não pego lugar para sentar. Mas estou acostumado a viver na vertical. Minha casa mesmo é tão pequena que só não durmo na vertical porque o homem foi feito para morrer a cada noite. E a gente não pode morrer e ser enterrado em pé. Vivo tanto de pé que, quando morrer, quem sabe, serei enterrado em pé. Há tanta gente no mundo que um dia ainda existirão os cemitérios para defuntos em pé.

O ônibus parte. Chega perto do Zoológico, ele desaparece.

No outro dia, monto minha barraca. Chamo a barraca de loja. Os camelôs formam um mercado. O mercado dos camelôs tem o alto-falante de suas vozes, as vitrines horizontais, o caixa sentado no banquinho e a loja de um só funcionário. Vendo de tudo: relógio, caneta, cd, dvd, mp3, e todo e qualquer objeto que fascina o cliente por ser pequeno e representar o mundo grande.

Escurece. Fecho minha loja. Vou até a Rodoviária. Tomo o ônibus. Desta vez passo o Zoológico. No Núcleo Bandeirantes, quase chegando nos motéis, o ônibus desaparece novamente.

Mais outro dia volto para montar minha loja de um só funcionário que sou eu mesmo. Sou eu mesmo, sim, senhor. Tenho um caixa na cabeça. Três por dois, desconto de dez ou vinte por cento, se levar cinco ganha brinde. No Setor Comercial Sul bate o coração de Brasília. Meu vizinho acha que o coração de Brasília se chama Rodoviária. É bem possível que uma cidade tenha dois corações. Uma cidade não é pessoa. Uma cidade tem vários corações. Mas não posso me perder do meu assunto. Então chega a hora de fechar minha loja, deixar as mercadorias com o vigilante. Dou a ele grana pra guardar meus badulaques no edifício onde é vigia.

Pego o ônibus. O bicho desce pela Asa Sul, Zoológico, Núcleo Bandeirante, e, quando vai pegar o Riacho Fundo, desaparece.

Volto no outro dia para o meu ponto. O mercado está agitado. Agitado porque alguém pegou a bolsa de uma madame, saiu correndo, veio polícia. Não gosto da palavra madame. Meu vizinho que já foi poeta e agora é só bêbado diz que madame é coisa do passado. Agora não há mais madame. Madame é coisa tão antiga quanto as perucas empoadas dos nobres do passado. Eu também tenho meu lustre. Eu escrevi esta frase “Eu também tenho o meu lustre” para mostrar que eu também tenho o meu lustre.

Eu estudei na vida. Não sei para que serve o estudo. O estudo só serve para embebedar meu vizinho. Se meu vizinho não soubesse tanto ele não beberia. Eu não bebo. Outra vez pego o ônibus na Rodoviária. Ele vai pela Asa Sul, toma a direção do Zoológico, Núcleo Bandeirante, Riacho Fundo, e, na entrada para Taguatinga Sul, o ônibus desaparece.

Mais outro dia no mercado de concreto. Anuncio com vigor os produtos. Tenho boa venda. Sinto leve torpor. Há bastante umidade por causa da chuva. Estamos em época de chuva. Durante a seca, o mercado se transforma em mercado persa no deserto. O asfalto fica a areia mais quente que conheço. Areia compacta, dura, escura. O Setor Comercial Sul se apresenta como deserto negro, agudo e vertical. O mundo vertical em que vivo. Até mesmo o sexo é vertical. Há uma mendiga mais limpinha. Quando quero sexo vertical, não vou pra casa antes do escurecer.

Certa vez o parceiro dela nos surpreendeu atrás da banca de revistas. Puxou estilete. Fez o gesto de que ia me degolar. Depois caiu de costas de tão bêbado. Os meninos cheiram cola. Os pivetes já levaram muita coisa minha. Pobre não devia roubar pobre. Se ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão, pobre que rouba pobre deveria ter cem anos de prisão. Os ônibus são obsessivos. Os ônibus têm a mesma rota. Meu drama se resume a não conseguir chegar em casa.

A Rodoviária bem que poderia também ser mercado. Mercado humano. Os homens e as mulheres sentem o cheiro de cansaço e lascívia. Os ônibus estão carregados de lascívia. A lascívia nos ônibus ocupa muito espaço.

Meu ônibus avança pela Asa Sul.

Dessa vez, creio, estou confiante, chegarei a meu destino. Meu vizinho não gosta que se fale a palavra destino. Ela lembra que em inglês há duas palavras para destino. Destiny e destination. Diabo de homem instruído. Que faz enfiado num buraco? O primeiro é o destino da pessoa. O segundo é o destino da pessoa. Meu vizinho explica. O primeiro é a vida que a gente tem, o fado, o futuro, a fortuna. O segundo é o lugar para aonde se vai. Não se pode confundir o lugar para aonde se vai com o destino maior da gente. O destino da gente está escrito na cabeça da gente. O lugar para aonde a gente vai está escrito na parte dianteira do ônibus.

Meu vizinho foi professor da Fundação. Hoje vive largado dos estudos. Ele diz que os estudos é que o largaram. Ele tenta ler, mas não consegue entender mais nada. A pinga se mostra máquina de fazer velho. Uma máquina de fazer velho gente nova. Meu vizinho é um velho novo. Ou um novo velho. Novelho, meu vizinho. Velhovo, meu vizinho. Ele não se importa. Ele gosta que eu brinque com as palavras. Meu vizinho não tem mais nada na vida além das palavras. Quando a última palavra se for, ele morrerá.

Faço o mesmo percurso, até que enfim chego no meu ponto, desço e aí tudo desaparece. Estrada, ônibus, parada.

No outro dia volto para minha loja. Minha loja não paga imposto. O único imposto que minha loja paga é pra vida. A vida cobra um imposto danado da gente. Vida sovina. A vida quer cada vez mais. Hoje o dia está chuvoso e quando o dia está chuvoso vendo bem guarda-chuva. Tudo barato. Minha vida barata. Como marmita com ovo, lingüiça e arroz. Eu mesmo preparei. Dei um pouco pro meu vizinho. O dia passa rápido. Faturei bastante. Meu destino não sei qual é, mas minha destinação não é mais em direção a Samambaia que vou. Quero mudar de vida.

O ônibus chega. Asa Sul, Zoológico, Núcleo Bandeirantes, Riacho Fundo, Samambaia e por aí vai. Tenho medo de que tudo desapareça de novo.

Estou no sonho de um sujeito que acorda sempre que vai chegar em casa. Ela acorda porque não quer chegar em casa. Não quer reconhecer o pesadelo que é trabalhar de camelô no Setor Comercial Sul, pegar o ônibus suado, viver em pé o dia e a noite, para morar num barraco de invasão.

Estou cansado de morar nos sonhos de pobre. Bem que eu podia amanhã, em vez de morar num sonho onde no final o ônibus desaparece, eu bem que poderia morar num lugar de bacana, num lugar que o sujeito sonhasse que pegava o carro de luxo, tomava a direção do Eixão e fosse até a mansão dele no Lago Norte. E lá ele podia desaparecer com a sogra com Alzheimer, a mulher que embagulhou, o filho porra-louca. E no outro dia eu podia estar no sonho dele e começar tudo de novo até ele chegar em casa no Lago Norte, colocar uma dose de uísque no copo e tudo desaparecer.

O que tenho que fazer para morar no sonho de outro homem? O que tenho de fazer para sair da miséria que é ser apenas morador no sonho de um sujeito que não quer dormir para não sonhar que é ele mesmo?

(imagem retirada da internet: João Câmara)

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