domingo, 1 de outubro de 2017

A cidade no cinema 2, RCF


           Ora, o conceito é o que nos interessa. E o conceito de cidade no cinema não é unívoco, mas fruto de um recorte do diretor, do olho de um personagem ou da perspectiva que a câmara selecionou para apresentar uma cidade. Esta seleção não quer dizer apenas que é fruto de um ponto de vista do personagem principal, como em Taxi Driver, mas que as imagens, montagem, diálogos e cenas, entre outros elementos, criam uma cidade mesmo onde ela não existe. Criam uma cidade própria, uma cidade particular, uma cidade próxima aos personagens, ou ainda, uma cidade criada a partir de experiências humanas dentro da cidade que a transformam em cidades particulares dos personagens, do ambiente, do clima, da atmosfera, do olho mágico da câmara que seleciona, corta, junta e promove uma visão conceitual da cidade.
          De certa maneira, as cidades são estereotipadas no cinema. Nova York é vista como a megalópole das pessoas indiferentes e da solidão (Taxi Driver se enquadra nesta série), as cidades pequenas são mostradas como provincianas, de mentalidade tacanha, reacionárias e expulsando os que vêm de fora (Dogville é um exemplo abstrato deste caso). Há então uma padronização das cidades, fruto do fator cultural, e não propriamente do imaginário do cinema. Mostra, contudo, que as cidades no cinema já estão comprometidas com outro imaginário, o imaginário cultural.
            As cidades distópicas da ficção científica por sua vez apontam para um futuro que é um beco sem saída. Acentuando características hoje existentes das megalópoles, as cidades do futuro no cinema são sujas, hierarquizadas, divididas entre seres humanos e robôs, com ruas mal frequentadas por delinquentes, racionando alimentos, água e energia, embora sejam tecnologicamente avançadas. Este é um modelo imaginário, partindo de bases concretas e presentes, a fim de que se modele no inventário das cidades no cinema mais um comportamento estandardizado de apresentação das cidades. É certo que as cidades do futuro no cinema vieram da ficção científica da literatura, pois, aí já abundavam, desde Homero, a existência de cidades fantásticas.

IMPRESSÃO DE REALIDADE

            Se o cineasta afirmou que todo cinema é realista, Cristian Metz fala numa “impressão de realidade”. Esta impressão não advém somente em razão de que o que vemos é teoricamente palpável, o que está na tela é algo concreto, mesmo que produzido em computador e por intermédio de imagens virtuais. Mas a impressão de realidade vem principalmente do fato de que o que está ali é uma possível reprodução da realidade, principalmente nos filmes ditos “realistas”. Iser já tinha apontado para a capacidade de, na literatura, os espaços vazios serem preenchidos por uma Gestalt do leitor. Ora, os cortes cinematográficos, a montagem que oscila vários tempos, tudo isso é representado na mente do espectador que lhe dá continuidade e linearidade, provocando nele uma sugestão de que assiste a um aspecto da vida real. Da mesma forma, a cidade se insere nessa sugestão de realidade. Vários filmes, para situar a trama na cidade de Nova York, muitas vezes filmes passados numa rua, ou como nas peças de Neil Simon, comédias levadas ao cinema, passadas apenas num espaço restrito de um apartamento, fazem a sugestão de cidade apenas com uma imagem, um recorte da cidade. O recorte mais frequente é mostrar Nova York de longe, os prédios amontoados, vista de cartão-postal que imediatamente o espectador identifica e associa com diversos outros elementos que compõem a cidade. No cinema é tão forte a sugestão de realidade que basta uma imagem para provocar associações.
            Para o leitor, o aparecimento do personagem envolve uma capacidade conceitual maior do que o aparecimento do personagem no cinema. Cada leitor tem seu personagem idealizado a partir de dados descritivos fornecidos pelo escritor. Acresça ainda o fator complementar da idealização do personagem que pode ser sugerido por indicações psicológicas ou puramente associativas feitas pelo leitor. O espectador não tem outro repertório de confecção do personagem além daquele que, visualmente, lhe é oferecido na tela. Desta maneira, a capacidade de idealizar o personagem diminui substancialmente.
            Esta propriedade da ficção cinematográfica, contudo, não está isenta de idealização. É preciso que o ator que encarne o personagem seja crível, que sua atuação proporcione ao espectador uma impressão de realidade ou verossimilhança (a mesma verossimilhança da literatura). O espectador precisa descarnar o ator. Ou seja, a atuação deve ser de tal modo convincente que ele não fique a cada momento vendo Robert de Niro, mas seu personagem Travis. É Travis que vai criar a impressão de realidade, de fazer com que suspenda a descrença e passe a acreditar nas ações e na trama que envolve o personagem.
            A diferença entre a cidade e o personagem no cinema também está em que, mesmo que o ator consiga galvanizar a plateia e fazê-la esquecer de si, como ator, para se entregar à fruição do personagem, a cidade, ao contrário, não tem a necessidade de “atuar” de forma convincente a fim de que se descaracterize o “ator” que a concebe. A cidade é única. Nova York é Nova York. Tudo o que o cineasta tem é que apresentá-la de forma crível. E mesmo que a deforme, sempre será uma deformação em nome de uma individualidade. Logo a comparação entre a cidade e o ator-personagem não tem aparentemente semelhança. Vejamos o caso das adaptações literárias. O personagem de Aquiles, feito por Brad Pitt, em Tróia, não consegue convencer a muitos dos amantes e leitores de Homero. Alguns chegaram a dizer que o ator, bom ator, não tinha uma leitura ampla do mundo grego e que representava Aquiles como se fosse um filme de luta igual aos filmes de segunda classe que abundaram o século XX com gladiadores em Roma, por exemplo. Sempre houve, no caso das adaptações literárias para o cinema, a dificuldade de os espectadores não identificarem aquele ator que está na tela com a figura que imaginaram de Madame Bovary, Dom Quixote, Capitu, e por aí vai. É porque a literatura tem a capacidade de individualizar o personagem, tornando-o conceitual, já que pouco o descreve fisicamente e, quando o faz, nunca logra, de forma cabal e visual, projetar uma imagem que não seja idealizada. No cinema, temos o personagem em sua concepção completa: traços físicos, jeito de andar, cor do cabelo, altura exata etc. A cidade, por sua vez, na literatura e no cinema não tem este conflito de imagem. Mas o diretor deverá estar atento para, não exatamente criar uma cidade incompatível com a cidade idealizada pelo espectador, mas de fazê-la aparecer de forma verossímil, de torná-la especial. A Recife de Amarelo Manga é uma Recife marginal, pobre, periférica. A Recife que conhecemos, Boa Viagem, o centro histórico da cidade, as pontes, os edifícios, esta Recife de classe média não está no filme. É significativo que só apareça como fundo, linha de horizonte irregular feita de prédios distantes. Voltamos, pois, a aproximar cidade e personagem.
            A cidade de Nova York vai se tornar “personagem” na medida em que o diretor a personalize, ou seja, na medida em que o cineasta a faça particular, única, própria do personagem, vinculada a ele. A cidade é apenas ruas, avenidas e construções. Ela se forma de maneira particular quando a trama ocorre em suas ruas. E ocorre de maneira exclusiva, pessoal, vista pelo ângulo do personagem – a Nova York de Táxi Driver, repetimos, é a Nova York de Travis. Da mesma forma, há de se criar uma idealização complementar da cidade. Não é apenas a cidade dos cartões-postais, a cidade pouco humana, a megalópole, mas a cidade do olho de Travis (as cenas iniciais do filme frisam bem esta “visão” de Travis ao enquadrar várias vezes os olhos do personagem rondando a cidade). Logo, insistimos, assim como o personagem deve ser descarnado do ator, a cidade no cinema sofre também uma idealização complementar.
            Em A cidade dos sonhos, de David Lynch (tradução em português do título em inglês Mulholland Drive, a cidade de Hollywood é frequentemente mostrada para não apenas situar a narrativa como também referenciar a cidade que é conhecida pela fama de fábrica de sonhos do cinema. O título em inglês não demonstra, curiosamente, a força do título em português. O filme trata de um devaneio. E, se na primeira parte, o cineasta trabalha com o clima de suspense, na parte final envereda por uma narrativa simbólica, aleatória, onírica, desfazendo o que construíra como se os personagens estivessem vivendo num sonho. A aproximação de cinema e sonho é antiga (v. Buñuel e Le chien andalou). Àqueles que querem ver no cinema uma projeção do imaginário e inconsciente do sonho, lembro que a organização dramática diminui a semelhança. Para criar uma linearidade narrativa, racional e lúcida, mais próxima do consciente do que do inconsciente, o cinema rende-se mais à repressão dos instintos do que à liberação do anímico e onírico.
            A cidade dos sonhos mostra uma Hollywood estereotipada. Ora, quem conhece a cidade de Hollywood percebe que, apesar de abrigar os grandes estúdios cinematográficos, ela é uma cidade normal. A maioria dos seus habitantes muitas vezes não vive diretamente do cinema. Ela opera uma normalidade urbana que pode se comparar a qualquer outra cidade e seus intercâmbios sociais. Contudo, Hollywood está contaminada pelo mito do cinema. E o cineasta não foge deste clichê. Se ele tenta desfazer esse clichê durante a narrativa, principalmente não glorificando a cidade, mas mostrando sua fragilidade e perversidade (que também é uma forma de se render ao mito), Lynch acaba trabalhando com estereótipos. É mais forte a projeção do imaginário da cidade de Hollywood na mente dos espectadores do que a tentativa de mostrar de forma original uma cidade que está comprometida a priori com sua concepção mítica.

(continua)


(do livro A cidade na literatura e outros ensaios. São Luís, Edições da Academia Maranhense de Letras, 2016)





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